Entrevista: para o economista Raul Velloso, emitir dinheiro pode ser uma realidade

Raul Velloso || Crédito: Ailton De Freitas

Para o economista Raul Velloso, um dos maiores especialistas em contas públicas do país, o Brasil pode – e deve – emitir muito mais moeda para combater a pandemia. Em entrevista a PODER o ex-secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento critica os que defendem a manutenção do teto de gastos e aponta a necessidade de investimentos como forma de retomada no pós-crise

Por Armando Ourique Fotos Ailton de Freitas

Antes mesmo de conceder esta entrevista, Raul Velloso, Ph.D. em economia pela Universidade de Yale, nos EUA, avisou que havia acabado de fazer uma reviravolta nas suas ideias sobre economia. “Não sou mais um fiscalista”, anunciou. “Discordo do que o mercado financeiro está pedindo”, disse, referindo-se à aprovação urgente de reformas econômicas, de redução de gastos e de alta das taxas básicas de juros. Até novembro de 2020 um dos mais ortodoxos defensores do rigor fiscal, Raul Velloso, presidente no Fórum Nacional do Inae (Instituto Nacional de Altos Estudos) e um dos maiores especialistas em contas públicas do país, passou a defender a chamada Teoria Monetária Moderna (TMM), sustentada no exterior por nomes como Jason Furman e Larry Summers. Sem temer um surto inflacionário, Velloso acha que o Brasil pode e deve, diante da segunda onda da pandemia, emitir muito mais moeda e títulos de curto prazo para financiar programas de saúde e de auxílio emergencial. Com a sua habitual inteligência e clareza de raciocínio, Velloso, que foi secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento durante o governo Sarney e é desde a década de 1980 um dos principais analistas da economia brasileira e de sua conjuntura, oferece nesta entrevista comentários sobre diversos assuntos. Mas talvez as suas observações mais contundentes girem em torno do significado de o Brasil ter hoje quase US$ 400 bilhões em reservas internacionais e capacidade de a longo prazo gerar moeda forte com as suas competitivas exportações de commodities. Para ele, essa nova posição internacional do país permite manter juros baixos, enfrentar satisfatoriamente as calamidades impostas pela Covid-19 e retomar no ano que vem, quando a pandemia tiver sido superada, um robusto crescimento econômico.

PODER: COMO O SENHOR AVALIA O DESEMPENHO DA EQUIPE ECONÔMICA ANTES E DURANTE A PANDEMIA?
RAUL VELLOSO: Nada garante que o que o ministro Paulo Guedes estava fazendo antes da pandemia era o que precisava ser feito. O pior é que as chances de ele aprovar [no Congresso] o que pensava eram muito baixas. A criação do Ministério da Economia foi o primeiro grande erro do [presidente] Bolsonaro. Magnificou a probabilidade de erro. Juntaram tudo e aquilo se tornou uma coisa grande, errada e ruim. Salvo a Reforma da Previdência, que já vinha sendo discutida, não havia um ambiente preparado para implementar aquelas mudanças radicais que o ministro queria. Por isso, quando veio a pandemia foi fácil dizer que ela não deixou as outras reformas serem aprovadas e o crescimento mais vigoroso acontecer. Na gestão Bolsonaro, Paulo Guedes não compreendeu a natureza da situação emergencial que estávamos vivendo. Ele não queria cuidar da pandemia, foi o Congresso que reagiu. Ao ser chamado na Câmara, informou que pretendia gastar entre R$ 3 bilhões e R$ 5 bilhões para aniquilar a pandemia. Hoje já gastamos quase R$ 500 bilhões. Pressionado, Guedes queria conceder um auxílio emergencial de R$ 200. O Congresso elevou para R$ 500 e o Bolsonaro fixou em R$ 600, para tentar recuperar o protagonismo político.

Raul Velloso || Crédito: Ailton De Freitas


PODER: QUAL O IMPACTO DO CONJUNTO DAS MEDIDAS COMPENSATÓRIAS QUE EVENTUALMENTE FORAM ADOTADAS?
RV: O FMI, o Banco Mundial e todos estavam projetando uma queda do PIB no ano passado de 9%. Virou 4,5%. A julgar por isso, vamos mostrar um desempenho melhor do que esperavam. Ninguém imaginava que o Brasil, na situação fiscal que estava, fosse se dispor a gastar muito para fazer o que fez. É que as forças políticas no país são atuantes e o governo Bolsonaro politicamente fraco, não conseguia impor nenhuma política. O Paulo Guedes não conseguiu fazer nada a não ser tocar mais ou menos a Reforma da Previdência, que na verdade foi tocada pelo Congresso. Ele entrou de carona, com o agravante: sequer fez que ela valesse automaticamente para estados e municípios, onde o problema previdenciário é maior. E sobre o auxílio emergencial vemos que a situação hoje é pior do que em 2020. Os depoimentos das pessoas que atendem na área de assistência médica são de chorar. Não dá mais para R$ 300, vão ter que fazer algo como R$ 450.

PODER: E AS CONTAS PÚBLICAS AGUENTAM ESTE AUXÍLIO EMERGENCIAL ADICIONAL?
RV: Aguentam. Tivemos por muito tempo resultados fiscais até razoáveis, com superávit primário positivo e déficits nominais não tão altos. Isso mudou uns cinco ou seis anos antes da pandemia por três motivos: gastos previdenciários crescentes, subida da Selic (taxa básica de juros) e a queda do PIB, que puxou para baixo a arrecadação. A arrecadação deverá ficar no nível do ano passado. A previdência continua mal. Os principais estados e municípios continuam quebrados do mesmo jeito. É importante registrar que no ano passado a situação se deteriorou, a Selic desabou e não aconteceu nada de ruim. A Selic está hoje a 2%, quando há pouco já esteve a 14%.

PODER: O BC CONSEGUE MANTER A SELIC NESSE PATAMAR?
RV: Temos próximo de US$ 400 bilhões de reservas internacionais no BC. Se você gastar (para proteger os juros baixos) US$ 100 bilhões, ainda ficará com US$ 300 bilhões. Na verdade, você pode ficar com bem menos do que US$ 300 bilhões. Esta é uma das grandes vantagens do Brasil: não dependemos do exterior para financiar a dívida pública. É o oposto da Argentina. Não precisamos bater na porta do FMI para pegar dólar para rolar a dívida. A dívida pública brasileira é toda em reais. Se [o BC] torrasse US$ 100 bilhões de reservas, com dólar a R$ 5, teríamos R$ 500 bilhões. Não estou dizendo que vamos fazer isso deliberadamente. Mas suponha que a gente perca US$ 100 bilhões, se muita gente estiver abandonando o Brasil. Sabemos que não precisa disso para gerir as contas externas, que vão superbem. Veja a produção agrícola, as exportações. A demanda externa por alimentos continua.

PODER: A BOA SITUAÇÃO DAS EXPORTAÇÕES AGRÍCOLAS NÃO PODE SER PREJUDICADA PELA HOSTILIZAÇÃO DA FAMÍLIA BOLSONARO À CHINA, QUE PODE VIR A INCENTIVAR O PLANTIO DE SOJA EM OUTROS PAÍSES?
RV: Não dá tempo, o Bolsonaro sai antes de conseguir fazer isso. Não me preocupo com essa possibilidade. O Brasil pode emitir muito mais moeda do que se imaginava. Estudos do Jason Furman e do Larry Summers, macroeconomistas de peso nos EUA, na linha da Modern Monetary Theory (MMT), demonstram isso. Furman disse que a questão de que mais se arrependia na vida era o fato de que defendia há muito tempo a redução da razão entre a dívida pública e o PIB. Eles descobriram que nós estávamos usando um conceito errado, porque não se pode comparar um estoque, que é a dívida, com um fluxo, que é o PIB. Estou dizendo que o aumento da razão dívida-PIB (para 100%, como pode acontecer com o forte aumento dos gastos públicos) não é motivo para parar de dormir.

PODER: O BRASIL NÃO EMITE MOEDA FORTE. A SUA AUTONOMIA MONETÁRIA, PORTANTO, NÃO É RELATIVA?
RV: O Brasil hoje é uma potência em moeda forte estrangeira, sem emitir uma, e está caminhando para um dia se tornar um país de moeda forte. Mas ele já é uma potência porque ainda tem quase US$ 400 bilhões de reservas no caixa. Não tem dívida externa pública e tem uma máquina de fazer dólar que cada ano aumenta mais, que é a indústria do agronegócio, com os portos e com as ferrovias que estamos adicionando a cada ano.

PODER: O SENHOR DIZ QUE NÃO DEVERÍAMOS ESTAR PREOCUPADOS COM A RAZÃO DÍVIDA-PIB SUBIR PARA 100% EM FUNÇÃO DAS POLÍTICAS ADOTADAS DIANTE DA PANDEMIA?
RV: Sim. Temos que ter o PIB crescendo mais do que a taxa de juros real. Emergencialmente [é necessário que] aumente a razão dívida-PIB e na hora que a emergência passar você começa a trabalhar para a razão da dívida-PIB cair. O que não é difícil, porque a taxa de juros real hoje é quase zero. É só não deixar a taxa de juros subir absurdamente.

PODER: MAS QUEM VAI CONFIAR EM VIR PARA O BRASIL PARA REABRIR A FORD, POR EXEMPLO?
RV: A Ford é outra história. A indústria não é prioridade para o Brasil. Estamos sustentando uma indústria ineficiente há muito tempo e a nossa vantagem comparativa não é a indústria. Somos o país das commodities, dos recursos naturais, dos minérios. Essa que é nossa grande vantagem comparativa, que gera essas divisas. E do que a maioria dos países subdesenvolvidos morre de inveja. Quem tem proteção natural é o setor de serviços. Você não pode importar um aeroporto. Mas estamos na Idade da Pedra no diagnóstico e no conhecimento das coisas do Brasil.

PODER: O ECONOMISTA ANDRÉ LARA RESENDE ADVOGA QUE DÉFICIT PRODUZIDO POR INVESTIMENTO PÚBLICO BEM-FEITO É UM DÉFICIT, DIGAMOS, “SAUDÁVEL”. CONCORDA?
RV: Sim. Mas não é que o déficit seja saudável, sou menos radical. Onde tem oportunidade para investir associado ao setor público? O que podemos fazer para atrair esse investimento? Se precisar emitir moeda para que isso aconteça, vamos emitir. Não há problema nenhum porque no fim vai gerar um resultado positivo de ganho de competitividade e produtividade, que compensa qualquer pressão em outro segmento que essa emissão fizer.

PODER: MUITAS PESSOAS AVALIAM QUE TEREMOS AUMENTO DA INFLAÇÃO, DESEMPREGO E ATÉ MESMO RISCO DE CALOTE DA DÍVIDA PÚBLICA SE O CONGRESSO NÃO APROVAR REFORMAS QUE O GOVERNO PROPÕE. ISSO O AFLIGE?
RV: Eles falam isso, mas ninguém comprova que vai acontecer. Esse temor é um discurso que foi criado. Se acontecer essa premissa é preciso que alguém com dinheiro aplicado em título público resgate e fuja do Brasil. Mas ele vai perder, se fizer isso. Ameaçam, mas ninguém quer perder dinheiro. O Brasil não deve em dólar. Isso [risco de calote da dívida] é ameaça, é chantagem. Diante de pressão por aumento de juros o BC deveria apenas encurtar os prazos dos títulos.

PODER: E NÃO LHE PREOCUPA O ENCURTAMENTO DO PRAZO DA DÍVIDA?
RV: Ele só me preocuparia se conseguisse estabelecer que existe um elo entre isso e o aumento da taxa de inflação. Elo este que não se estabeleceu em 2008. Os bancos centrais dos EUA e da Europa aumentaram a base monetária em mil por cento para socorrer os bancos. O que aconteceu com a inflação depois disso? Caiu. O encurtamento de prazo, o aumento dos títulos de curto prazo ou da base monetária na composição do setor público não causa inflação. Inflação não decorre do aumento do grau de liquidez dos ativos públicos.

PODER: VOCÊ ACHA POSSÍVEL MANTER JUROS BAIXOS E RECUPERAR A CAPACIDADE DE INVESTIMENTOS PÚBLICOS? ESTAMOS CRIANDO BASES PARA UM CRESCIMENTO MAIS FORTE DA ECONOMIA BRASILEIRA?
RV: Sim, a partir do momento que a gente se livrar da pandemia. É preciso separar com nitidez a emergência do novo normal. Na emergência você só não pode matar a mãe, no mais tudo é permitido. Você faz o que for preciso para evitar a morte. O que está em jogo hoje é morrer muito mais ou emitir moeda. Eu prefiro emitir moeda. Ou as pessoas acham que com essa segunda onda da pandemia a economia brasileira vai “bombar”? Não vai. Não temos um programa de vacinação de qualidade, vamos ter um ano muito difícil. Nós precisamos gastar, não podemos deixar as pessoas morrerem. Por enquanto elas estão morrendo nos hospitais de Manaus, daqui a pouco vão morrer nos hospitais dos estados mais pobres. E depois as pessoas vão morrer nas ruas, porque elas não vão ter dinheiro para comer. Não pode faltar dinheiro para sustentar o sistema de saúde, nem para as pessoas comerem. É tão simples quanto isso. No ano que vem faremos um balanço. Até lá não quero saber de novo normal. Vamos emitir moeda, financiar os auxílios, financiar os hospitais. A economia, coitada, vai funcionar aos trancos e barrancos. Não há como ela funcionar bem em um quadro de calamidade.

PODER: O QUE VOCÊ ACHA DAS DEMANDAS POR AUMENTO DAS TAXAS BÁSICAS DE JUROS?
RV: Eu vou me preocupar porque o mercado financeiro está fazendo chantagem e querendo que as taxas de juros subam? A gente emite moeda e dá uma banana para o mercado financeiro. Desculpe a indignação, mas não tem outro jeito.

PODER: QUAL SUA PREVISÃO PARA O CRESCIMENTO DO PIB?
RV: Impossível estimar. Ao comparar a média das previsões com a do ano passado, dá um carry over de 2,5%. Mas se a pandemia vier com muita força, até que as vacinas façam efeito, ao invés de ter o carry over poderemos ter o “carry down”. Podemos voltar a próximo de zero.

PODER: DURANTE O GOVERNO GEISEL, O II PND (PLANO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO) DO SEU IRMÃO, JOÃO PAULO DOS REIS VELLOSO (MINISTRO DO PLANEJAMENTO NA ÉPOCA), ENFATIZAVA UMA POLÍTICA ECONÔMICA DE ESTÍMULO A INVESTIMENTOS NA INDÚSTRIA. ELE NÃO PENSAVA NA AGRICULTURA, COMO VOCÊ ESTÁ PROPONDO.
RV: Pensava sim. Convivi tanto com ele que estou pensando em recuperar a visão que tinha. Sobre a indústria, tinha uma atenção especial, mas não para dar uma proteção forte. O BNDES foi o grande financiador da siderurgia, que não era indústria de transformação. Fertilizantes e defensivos agrícolas estavam no II PND. A justificativa era economizar divisas, esses programas eram destinados a substituir as importações. A grande preocupação dele era o Brasil não ter dólares. Hoje não precisamos nos preocupar tanto porque o agronegócio tomou conta, mas sua grande fixação era resolver o problema da escassez de divisas.

PODER: O FATO DE O BRASIL HOJE NÃO TER PROBLEMA DE DIVISAS É O QUE O FAZ SER DIFERENTE EM RELAÇÃO A 1980?
RV: Em 1982, o Paul Volcker [presidente do FED dos EUA] levou a taxa de juros acima de 20% e o Brasil não tinha um tostão no caixa, zero. O Langoni, presidente do BC, ficava na agência do Banco do Brasil em Nova York nos piores dias da crise de liquidez no telefone pegando dinheiro no overnight para fechar o overnight do Brasil. Hoje tem quase US$ 400 bilhões de reservas e não tem um tostão de dívida pública em dólar. Então temos que dar banana para o mercado financeiro quando ele quiser fazer chantagem.