PROPÓSITO COM PROPÓSITO

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Há mesmo verdade na conversão de empresas e executivos ao mantra do século 21? Para alguns profissionais, não resta dúvida

Por Paulo Vieira

Se houvesse um dicionário com vocábulos do mundo corporativo do século 21, ele poderia ter apenas cinco entradas – legado, propósito, stakeholder, diversidade e, correndo por fora, equidade. Falar de lucro e competição parece ter virado algo bastante démodé, quando não francamente desagradável, embora sejam esses desde sempre os motores do sistema capitalista em que o mundo segue inserido. Assim, uma pergunta se impõe: quanto de verdade há no anúncio de que uma empresa ou um profissional age com propósito?

Certamente havia menos interesse na saúde dos consumidores e das pessoas impactadas pela poluição dos carros do que nos resultados quando a Volkswagen decidiu desenvolver um software capaz de “perceber” o momento exato em que seus modelos passam por testes de emissão. Nessa hora, e só nessa hora, carros como o Amarok e mesmo o New Beetle poderiam emitir gases em níveis adequados para não tomar pau da vigilância ambiental. Descoberto em 2015, o escândalo apelidado de “dieselgate” custou US$ 30 bi de prejuízos à Volks somente nos Estados Unidos, prisão de executivos e uma mancha considerável na reputação da empresa – o que não impediu, contudo, que a montadora celebrasse em 2017 um recorde mundial de vendas. Em 2018, a Volks lançou um programa global de “mudança cultural”, o Together4Integrity, visando criar uma cultura de “sempre agir com integridade e auxiliar na disseminação, compreensão, importância e eficácia deste tema [integridade]” entre os colaboradores da empresa.

Mas talvez o caso da montadora seja incomum, a julgar pela maneira como a produtividade geral de uma companhia é impactada pelo propósito. No livro Felicidade S.A., o autor, o jornalista especializado Alexandre Teixeira, apresenta dados que sustentam que o custo de uma certa “crise de desengajamento” nas empresas americanas já significou perdas de performance equivalentes a US$ 300 bi anuais. Para o ex-CEO da Nextel e hoje coach Sérgio Chaia, o tema vem ficando “evidente” nas preocupações dos executivos, tanto porque “pessoas com propósito claro são mais felizes e mais engajadas no trabalho e, portanto, têm melhor performance”, como pelo fato de que “pensar nisso é uma espécie de inclinação natural em certo momento da carreira do CEO”. “Ele entra numa fase da vida que já conquistou muita coisa, está bem estabelecido, tem reconhecimento, então começa a pensar no próximo passo, no fechamento de ciclo”, disse Chaia a PODER. O consultor, que hoje sugere esse passo a seus clientes, revela que aqueles a quem assessora nesses ganhos de capital “intelectual e espiritual” têm de 42 a 52 anos, faixa de idade em que um profissional entende que dificilmente vai se “perenizar como CEO”.

De 2014 a 2018, o consultor e membro de conselhos Paulo Sérgio Silva, o Paulão, foi CEO da Walmart.com do Brasil, cabendo a ele implantar a estratégia digital do gigante do varejo e fazer a integração também com a seção off-line. Pioneiro da internet no país no site Terra, ele diz que, “por decisão pessoal”, optou por reduzir o ritmo de trabalho – com direito a eventuais sextas-feiras livres – e se aproximar das startups, ao mesmo tempo em que, como consultor, ajudava empresas familiares a “navegar a transformação digital”. “O e-commerce se tornou a prioridade número 1 para o varejo, mas para a indústria a transformação digital entra em todas as áreas. Um de seus objetivos é tornar as empresas mais transparentes.” O propósito, para Paulão, está bastante inserido aí, já que o novo consumidor quer uma “vida mais saudável” e um respeito maior ao “planeta” – e isso é levado em conta na decisão de compra. Paulão, que tem confeccionadas algumas palestras sobre liderança, acredita que o propósito moldou um novo tipo de liderança, muito mais inspiradora. “Agora é muito menos o ‘eu mando, você obedece’. O líder de hoje é o cara que faz o time pensar a construção do negócio, não simplesmente executar uma determinada tarefa.”

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NOVO GRAAL
Se melhor performa quem tem propósito, é lícito acreditar que algumas empresas estejam numa busca algo artificial por esse novo graal – mantendo válido assim o famoso dístico de Frank Zappa, “we’re only in it for the money”. Mas como na explosão brasileira do ESG em 2020, o custo do greenwashing de alguns talvez compense a conversão para padrões mais éticos e de maior respeito socioambiental de vários. Uma área em que o propósito parece ser bastante genuíno, digamos, é o de capital de impacto, em que figuras do mercado financeiro estruturam fundos de investimento para alavancar empresas selecionadas por critérios mais altruístas. Pedro Vilela passou pelo Pátria antes de cofundar a Rise Ventures e assim define sua “conversão”: trata-se de um “velho sonho de promover viabilidade financeira e crescimento para companhias que entreguem retorno financeiro e impacto positivo para o mundo”. Para ele, esse “sonho” não implica arrependimento pelas etapas vividas em empresas sem tanto (ou nenhum) propósito, mas um “redirecionamento para carreiras de mais sentido”. O modelo da Rise e das empresas de capital de impacto de modo geral envolve não apenas a estruturação e viabilização dos investimentos que irão alavancar os favorecidos, mas a entrada de seus executivos na gestão dessas companhias. A Rise é acionista de três empresas de áreas de meio ambiente e alimentação saudável e pretende triplicar o portfólio em mais quatro anos. O nicho em que atua, segundo Pedro, é de empresas que faturam de R$ 5 milhões a R$ 100 milhões, “muito caras e grandes para investidores-anjo, mas ainda pequenas e baratas para fundos de equity”.

Uma empresa de escopo internacional tem atuado no Brasil para ajudar a injetar propósito, ou ao menos qualificar e certificar os caminhos que outras companhias vêm adotando nessa tarefa. A Sistema B certificou 202 empresas no Brasil (5,2% de todas as companhias “B” do mundo), mas parte esmagadora delas é de porte bastante reduzido. Natura, Movida e alguns grupos educacionais, como o Anhembi Morumbi, se destacam em busca dessa “redefinição de sucesso”, expressão cara à B, que pode ser traduzida por “contribuir para um sistema econômico mais inclusivo, equitativo e regenerativo para as pessoas e para o planeta”. Ao se tornarem B, as empresas assumem o compromisso de “melhora contínua” em governança, meio ambiente, clientes, trabalhadores e comunidade – enfim, a definição já clássica de stakeholder – e a certificação é concedida mediante o atendimento de parâmetros rígidos. A julgar pelo currículo de Marcel Fukayama, diretor executivo e cofundador do braço brasileiro do Sistema B, as empresas que entram na rede estão em boas mãos. Aos 17, ele fundou um cybercafé pioneiro em São Paulo, e seis anos depois renunciou ao “patamar de remuneração dos meus colegas de MBA” para levar inclusão digital a quem talvez nem soubesse do que se tratava essa expressão na CDI, ONG vanguardista e atuante em 15 países da América Latina. Mais recentemente cofundou a Din4mo, uma “venture builder”, empresa que constrói startups – não apenas as acelera –, compartilhando capital, mas também estruturas de marketing, jurídica, contábil etc. A ideia é formatar empresas que atuem para atender os auspiciosos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU nas áreas de educação, cidades sustentáveis, saúde e bem-estar. Uma das companhias que a Din4mo forjou é a Vivenda, que reforma casas em favelas e comunidades. “Era literalmente um slide de PowerPoint que se transformou numa empresa que em sete anos já fez 1.500 reformas”, diz Marcel. O empreendedor destaca o “modelo de financiamento inovador” utilizado pela Vivenda. Trata-se do que ficou conhecido como primeiro título de dívida (debênture) de impacto do Brasil, de valor de R$ 5 milhões, distribuído pelo Itaú a investidores profissionais, valor que se tornou crédito para famílias de baixa renda reformarem seus cafofos. Para os investidores, o título, ao ser lançado, em 2018, pagava 7% ao ano – 0,5% acima da taxa Selic de então.