Por Paulo Vieira
Fotos Mauricio Nahas
Obsessão pode não ser a palavra predileta de Lara Lemann e de sua sócia Mônica Saggioro, mas é uma das mais usadas por elas em seus depoimentos, entrevistas e pitchs ao descrever a gestora de venture capital de que são sócias e fundadoras, a Maya Capital. “Temos obsessão por resolver grandes problemas, criando grandes transformações”; “Para empreender não se pode perder a obsessão grande” – essas frases, dentre outras, foram ditas pelas duas a PODER em entrevista na sede da Maya, no Itaim Bibi, em São Paulo.
Lara, que é filha do investidor “hero” Jorge Paulo Lemann, e Mônica, que se virou nos 30 depois de se formar em comunicação na ESPM e fazer MBA em Harvard, confundem deliberadamente obsessão com a visão do negócio que tocam. Com duas emissões em quatro anos, as sócias querem fazer de sua gestora o benchmark latino-americano dos fundos de venture capital (VC) a investir em empresas em estágio inicial (“early stage”, no jargão das startups); desejam ainda tornar a Maya referência no modelo “hands on”, quando a gestora se envolve em decisões estratégicas e operacionais de suas investidas; e, finalmente, querem ter o fundo de VC modelar do continente por entregar retorno para os investidores acima do padrão da concorrência.
A ambição é grande, talvez ainda maior do que a obsessão, mas os números, ao menos o que elas divulgam, endossam o discurso. Do primeiro fundo, de US$ 40 mi, de 2018, apenas uma empresa investida, entre 30, ficou pelo caminho. Saíram daí dois unicórnios, a foodtech chilena NotCo e a brasileira Merama. O segundo, de junho passado, é mais generoso, de US$ 100 mi, mas o número de investidas se mantém próximo de 30. Cerca de metade do capital ainda deve irrigar rodadas secundárias (follow on) das companhias que estão com a Maya desde o início.
Investir no early stage é diferente de entrar no “growth”, quando as startups são mais maduras e já têm produtos rodando no mercado, opção, por exemplo, de Romero Rodrigues em seu fundo de R$ 900 mi com a corretora XP. Curiosamente, Lara e Mônica não eram obsessivas, ao menos filosoficamente, pelo early stage. Foi uma decisão racional, fruto de análise ambiental, tomada pelas duas ao perceberem uma lacuna no mercado. “Havia muito capital estrangeiro olhando o growth. E isso acabou dando ‘match’ com nossas capacidades e network, nossa forma de analisar negócios, de agregar valor e ajudar as empresas a continuar captando”, diz Lara.
O tal “hands-on” implica algumas responsabilidades para a Maya. Além da curadoria matadora, “default” para qualquer fundo de VC que se preze, as sócias e seus cinco colaboradores atuam para as startups na contratação de executivos, na prospecção de novos sponsors e na expansão do relacionamento – como ocorreu entre a NotCo e a gigante Kraft Heinz, encontro definidor para multiplicar as ambições da footech. É muito comum, ainda, que as sócias acabem no board das companhias, como ocorreu com a SafeSpace, uma plataforma de soluções de compliance para casos de assédio moral e sexual no trabalho. Rafaela Frankenthal, cofundadora e CEO da SafeSpace, elogia as investidoras. “Não cobram excessivamente, confiam no trabalho, sabem que a gente entende de nosso setor e estão sempre por perto quando precisamos”, disse a PODER. “Quando tivemos de fazer uma comunicação ao mercado, superajudaram, organizando a melhor forma de apresentação e até a estratégia, com quem falar, como falar.”
RETORNO X IMPACTO
Se é fundamental para as sócias estarem próximas das startups nas quais investem, o retorno para quem aporta na Maya chega a ser tratado como dogma. A operação, basicamente, tem de performar. Lara e Mônica dizem que a “promessa é fazer excelentes investimentos” e dar retorno para os próprios investidores “muito acima dos pares”. Segundo elas, o múltiplo de entrega atual é duas vezes a média de um determinado benchmark global. Para dar impedância a esse discurso, elas tentam desviar a atenção de outro aspecto que distingue a Maya da concorrência: o fato de a empresa ser fundada e controlada por duas mulheres. Não há filtro de gênero nas opções de investimento da Maya, ainda que 40% do portfólio tenha ao menos uma cofundadora mulher. “É um tema superdelicado, durante muito tempo a gente evitava falar qualquer coisa sobre isso. As pessoas têm muitos vieses inconscientes e, como somos duas mulheres, elas assumiam que poderíamos ser um fundo de impacto”, diz Mônica. Fundos de impacto social costumam dar menos retorno ao investidor, ou, ao menos, não trazem essa “promessa” como a maior de seu discurso.
“Havia muito capital estrangeiro olhando o ‘growth’, e isso acabou dando match com nossas capacidades e network, nossa forma de analisar negócios”
De qualquer forma, diversidade é um tema relevante para as duas, que lamentam que apenas 2,4% do montante de investimentos de VC irriguem empresas com fundadoras mulheres. Elas acreditam que “diversidade atrai diversidade”, mas reconhecem que a bolha startapeira dá fit com a frase de Caetano Veloso de “O Estrangeiro”: “o macho adulto branco sempre no comando”. No Brasil, há ainda uma concentração de fundadores de startups no eixo Rio-São Paulo e que, como elas, tiveram o privilégio de estudar fora do país. Uma maneira de atacar o problema – sem arranhar o dogma do retorno – foi ter criado, na Maya, o Female Force, uma iniciativa que conecta e oferece mentoria a fundadoras mulheres, além de mirar em outras minorias do ecossistema: negros, pessoas com deficiência e LGBTQ+.
“As pessoas têm muitos vieses inconscientes, e como somos duas mulheres, elas assumiam que poderíamos ser um fundo de impacto”
COISAS TRANSFORMADORAS
Na definição da empresa na conta do LinkedIn, um dos qualificativos usados pelas sócias é de valor negativo: “não óbvio”. E esse aspecto diz respeito não apenas à tríade do dogma do retorno, da atuação muito próxima das empresas investidas e da diversidade que Lara e Mônica por si só expressam, mas também à busca de companhias que utilizem a tecnologia para criar “coisas transformadoras”. No portfólio da Maya, nada conta melhor essa história do que Giuseppe, como é chamada a plataforma de inteligência artificial com a qual o unicórnio NotCo produz alimentos vegetais que emulam sabor e textura animais. A plataforma, que é patenteada, rastreia a estrutura molecular de milhares de plantas comestíveis para saciar o desejo de consumidores old school de hambúrguer e de leite de vaca – inclusive nos Estados Unidos. Mas se na NotCo o não óbvio se traduz por investimento poderoso em tecnologia de ponta, em outros casos ele pode ser a solução perfeitamente escolhida para um grande problema – ou uma grande “dor”, como prefere o setor.
É difícil imaginar dor maior do que a fome no Brasil, ainda mais considerando-se o grande desperdício de alimentos aqui produzidos. Pois a Diferente, outra das investidas da Maya, tenta solucionar a questão dando sobrevida a alimentos de produção orgânica – frutas, legumes e folhas – vistos pelo mercado como fora de padrão e, como tal, destinados ao descarte. Sem atravessadores entre a startup e os produtores – todos certificados – e com um sistema de assinatura para os clientes garantindo previsibilidade nas compras, conseguem reduzir o preço final para o consumidor em até 40%, segundo a empresa. O alcance ainda é pequeno, a cidade de São Paulo e duas vizinhas do ABC, mas a empresa está apenas em sua primeira dentição. “Temos muito orgulho de ter a Maya conosco”, disse Eduardo Petrelli, fundador e CEO da Diferente, a PODER. “Elas têm menos investidas no portfólio, o que faz com que tenham mais tempo disponível para o empreendedor, que conhecem de maneira profunda. Aqui entenderam o modelo de negócio, fizeram muitos ‘checks’, ajudaram muito na rodada de captação. É mais do que dinheiro que aportam.”
RESSACA
A onda de demissões nas startups latino-americanas parece não incomodar as gestoras de VC, que reportam, no primeiro semestre de 2022, aumentos históricos para os investimentos em capital-semente e também para o early stage. A redução do “valuation”, o valor de mercado das empresas, inflado na pandemia, é boa notícia para os fundos, que se tornam, assim, mais potentes, embora mais cautelosos. Esse momento do setor, na opinião de Mônica, exigiu da Maya uma presença ainda mais intensa nas empresas investidas. “Está difícil para as startups captarem em novas rodadas, e, assim, ajudamos a mostrar referências, por exemplo, de como reduzir gastos. É preciso garantir a sobrevivência delas.” No que concerne à Maya, o recentíssimo lançamento de seu segundo fundo, o de US$ 100 mi, mostrou para o setor uma empresa capitalizada e com investidores aparentemente satisfeitos, dispostos a pagar novamente para ver. Além das family offices que já haviam entrado em 2018, a novidade agora entre os ingressantes são bancos e ao menos um grande investidor em fundos de VC internacionais, o Cendana.
Lara e Mônica se conheceram por intermédio de amigos comuns quando a primeira atuava como investidora-anjo e a segunda estudava o mercado, tentando validar em Harvard a tal hipótese da lacuna no early stage. Lara, que chegou a ser trainee da Ambev em 2016, diz que a cultura de resultados da companhia transformada por seu pai não se aplica exatamente aos propósitos da Maya, já que, se a Ambev tem que “continuar entregando”, a gestora tem de “continuar construindo” sua rede de empresas transformadoras que cultivam “visões maiores”. Jorge Paulo, que é um dos investidores da Maya, e também atua ali como advisor, acabou, segundo a filha, beneficiando-se da experiência da gestora, especialmente em sua expertise em encontrar jovens talentos que sabem tirar partido da tecnologia.
Em psicanálise, obsessão designa, grosso modo, uma gama de pensamentos que as pessoas se sentem compelidas a ter, como se assediadas por eles. O apego das sócias da Maya pelas startups em que investem e pelo dinheiro aportado na gestora transparece fartamente em seus discursos, mas isso não parece exatamente digno de atendimento terapêutico. Fora do escritório, aí já é outra história: em novembro, Lara vai para sua quarta maratona, a terceira em Nova York. Maratonas, como se sabe, são provas de 42 quilômetros de corrida (relevemos os 195 metros adicionais); já Mônica é do triatlo, disputa competições de Ironman, ainda que na categoria “half ” – basta a ela cumprir 1,9 quilômetro de natação, 90 quilômetros de ciclismo e 21 quilômetros de corrida. Nessa sequência e tudo na mesma jornada – não dá para deixar uma modalidade para o dia seguinte. Se capacidade aeróbica um dia se provar útil para os negócios, fica aqui a sugestão de mais um atributo para as sócias colocarem na relação de diferenciais não óbvios de sua gestora.
INVERNO RIGOROSO
O inverno das startups, como vem sendo chamada a longa sequência de semanas deste 2022 em que empresas maiores ou menores do ecossistema fazem redução do quadro de funcionários ou deixam de atuar em determinado mercado, pode não ser exatamente daninho para investidores que focam no early stage, como a Maya Capital. As startups que hoje colocam o pé no freio são normalmente as que já estão estabelecidas e recebem capital nas rodadas de crescimento (growth). Mas como acontece na política, não há vácuo no ecossistema, e os recursos podem irrigar novos negócios. Para o consultor e professor da Insper Renato Mendes, “quando as startups justificam as demissões dizendo que estão se reorganizando, é a mais pura verdade. O norte mudou de crescimento para rentabilidade”. “Mas”, segue ele, “as startups continuarão a crescer porque são resolvedoras de problemas de gente real. E não existe local mais propício para isso que a América Latina”. Lara e Mônica, da Maya, assinariam embaixo, já que a ideia de circunscrever seus investimentos no continente tem a ver exatamente com esse diagnóstico de que há grandes – e muitos – problemas a serem resolvidos. “Nossos problemas são estruturais”, diz Lara. “Enquanto lá fora buscam a solução de uma solução, algum novo negócio dentro do mercado de cripto, por exemplo, aqui estamos tentando consertar o mercado financeiro.”