Esta história é conhecida: interessada em criar uma imagem mais persuasiva e positiva, uma empresa de sorvetes recriou a história do avô de um de seus fundadores. O “nonno” era o sujeito visionário da família que, na Itália, lá atrás, já fazia sorvetes usando água da neve – o ancestral tinha nome e retrato no site da companhia, ambos falsos; algo semelhante aconteceu com uma companhia de sucos de caixinha, que formulou uma história e deu nome prosaico a apenas um de seus fornecedores de laranja. Nos dois casos, as empresas tentaram usar o storytelling – a contação de histórias – para fazer a mensagem gerar empatia e tornar-se mais presente na memória do consumidor. Pois bem: o storytelling, que utiliza elementos próprios de uma narrativa clássica – ação, conflito, superação desse conflito –, agora vem ganhando espaço nos processos internos das empresas. O objetivo é gerar mais engajamento dos colaboradores, ou seja, mais produtividade. Desde, claro, que as histórias sejam verdadeiras.
A transacional P&G utiliza a ferramenta para fixar histórias modelares, facilitar a transferência de conhecimento e criar esse tão almejado engajamento. “O storytelling está em tudo o que fazemos”, disse a PODER a diretora de comunicação da operação brasileira, Marjorie Teixeira. “A gente sempre trabalhou para criar histórias para o consumidor, e hoje vejo isso acontecendo em todas as áreas. Até mesmo o time de finanças conta histórias que tenham contexto, ação executada e resultado.”
O modelo clássico em “três atos” emula a famosa jornada do herói e tem o condão de se fixar com muito mais propriedade na mente das pessoas do que, por exemplo, dados de um relatório em que os “protagonistas” são cifras e relações numéricas. As razões já estão bem estabelecidas pela ciência. Fatos envoltos em narrativas tendem a ser relembrados 20 vezes mais, segundo o teórico da educação Jérôme Bruner. Narrativas que contêm ações estimulam o córtex frontal, área do cérebro também responsável pelas ações motoras.
O estadunidense Paul Smith, que passou boa parte de sua vida profissional na P&G, tornou-se teórico do storytelling. No livro Lead with a Story (não traduzido para o português), Smith enfileira estratégias administrativas que têm o storytelling como técnica central. A partir do sistema clássico, o mesmo usado pela P&G, que ele chama pelo acrônimo CAR (de contexto, ação e resultado), ele mostra como narrativas tendem a se perpetuar, ao contrário de relatórios quantitativos. E isso vale para o código de conduta de empresa, que pode – e deve – ser trocado por uma história modelar que o traduza; ou mesmo de conversas, ainda que informais, entre setores que não costumam se falar, como os departamentos de compras e vendas de uma mesma companhia. Com isso tudo, ficou pequeno para o famigerado PowerPoint: como já havia intuído há décadas Jeff Bezos, quando os slides são trocados por depoimentos de pessoas de carne e osso, o impacto da mensagem e sua longevidade são muito maiores.
Pioneiro do storytelling no Brasil, o quadrinista Bruno D’Angelo ajudou a Embraer a recuperar certo orgulho ferido de seus colaboradores quando da operação frustrada de venda para a Boeing, no começo da pandemia, em 2020. Ele cocriou o curta de animação de 14 minutos O Voo do Impossível, que mostra as sagas de Ozires Silva, fundador da Embraer, e de seu amigo Zico, que acabou por morrer antes de ver o sonho de ambos se concretizar. O sonho, fabricar aviões no Brasil, embala a narrativa, que é tocante mesmo para quem não tem qualquer relação com a Embraer. Bruno recentemente abriu uma empresa de fomento de produções de entretenimento, uma área em que o storytelling é central, e que, ao menos no Brasil, sofre com problema crônico de subfinanciamento. Ele define sua Wip como uma espécie de “aceleradora de estórias” que atua na descoberta e formação de novos roteiristas e outros criadores de narrativas; na resolução de questões de direito autoral; e, para retroalimentar o ciclo, na captação de recursos de patrocinadores como Netflix, Discovery e a ONG Gerando Falcões. Em entrevista a PODER, Bruno definiu o poder do storytelling com ajuda da teoria da evolução e de Yuval Harari, o autor de Sapiens: “O diferencial do ser humano como espécie é contar e entender histórias”.
Sem remontar exatamente ao tempo das cavernas – e das histórias plasmadas pelas pinturas rupestres –, Bruno Scartozzoni, outro pioneiro do storytelling no Brasil, também perdeu a conta do número de empresas em que mostrou o poder da contação de histórias. “É muito comum encontrar diretores e mesmo gerentes que sabem tudo de suas áreas, especialmente as mais técnicas, mas não conseguem comunicar bem o que fazem”, disse a PODER.
O profissional, que trabalhou em agências de publicidade e curiosamente é formado em administração pública, vem agora ajudando algumas companhias a entender a natureza do próprio negócio, às vezes pouco clara para seus colaboradores – e por vezes ainda mais confusa para o público externo. “Isso acontece bastante com startups de NFT e criptomoedas.” Bruno atua também no que é chamado de “knowledge management”, gestão de conhecimento em que conceitos e práticas são replicados pelos vários estamentos de uma empresa, na tentativa de impedir que esse saber se concentre em poucas figuras. O storytelling, para ele, significa “colocar emoção nos dados e nos fatos” e o princípio deve ser enfatizado inclusive na temerária hora das apresentações, dada a paúra que as pessoas normalmente têm de falar em público. “A boa apresentação depende de como você fala, de como encadeia ideias, da linguagem corporal”, diz. “Não é o caso de eliminar o PowerPoint, mas fazer com que as pessoas deixem de se esconder por trás dele.” Em seu livro Comunicação Inteligente e Storytelling, o jornalista paranaense Rafael Arruda conta uma história definitivamente emocionante que qualquer empresa gostaria de ver acontecer em seus domínios. É a de “dona” Gláucia Maria, que procura o vendedor de uma loja varejista do interior do Paraná na qual ela havia comprado eletrodomésticos. “Marquinhos”, o vendedor, era a única pessoa em quem Gláucia confiava para ensinar a ela como usar o celular de última geração que teve de adquirir. O aparelho permitiria que ela se comunicasse com a filha, que havia mudado para os Estados Unidos e lá tido seu primeiro filho – justamente o primeiro neto da avó distante. Marquinhos, segundo Rafael, “mudou a visão de mundo daquela senhora humilde” e a empresa em que trabalhava teve nas mãos a oportunidade de mostrar que o que “parece uma simples venda é, na verdade, criação de valor e oportunidades para as pessoas”. Eis o storytelling, pode-se dizer, em sua essência.
Em entrevista a PODER, Rafael, que tem um segundo livro sobre o assunto pronto para ser lançado, expôs visão otimista sobre os negócios. Ele vê na base de qualquer transação comercial a “tentativa de a j u d a r alguém de alguma forma”, ideia que a história de Marquinhos e Gláucia sintetizaria à perfeição. Histórias pessoais, nem sempre ocorridas no ambiente de trabalho, também são boas de contar quando um líder vai se apresentar a seu time ou a outras instâncias da empresa. Smith recomenda em seu livro que as equipes contem histórias pessoais. “Quanto mais pessoal, melhor”, escreve. Marjorie, da P&G, diz que a empresa, conhecida segundo ela por formar e reter talentos, estimula esse tipo de approach nas apresentações pessoais, tarefa a que os colaboradores se acostumam desde a chegada à companhia. Ela, que é baiana, gosta de dizer de onde veio e de usar fotos que exibem situações vividas em família. O princípio também tem respaldo na consultoria transnacional KPMG, que vê o storytelling crítico na hora do “onboarding”, a apresentação dos novos ingressantes na corporação. Luciene Magalhães, head de capital humano da operação brasileira, mostrou a PODER uma linha do tempo com seus próprios altos e baixos em uma jornada de mais de 33 anos na empresa, algo que ela costuma exibir nesses encontros. Suas marcas vermelhas, de menor produtividade, coincidem com anos de profundas transformações pessoais. “Nessa hora a empresa vê nossa história inteira, não apenas uma fotografia do momento. Há outro comprometimento de liderança quando a gente fala para os outros quem somos – e como somos.”