Filho é potência

Conciliar carreira e criação dos filhos ainda é um grande desafio para profissionais, principalmente mulheres. Isso porque o mercado vê a questão com preconceito e, muitas vezes, considera que, após a maternidade, a colaboradora não terá comprometimento. Contra essa avaliação equivocada, empresas começam a perceber como as competências desenvolvidas na maternidade podem ajudar negócios a avançar

Por Caroline Marino

Ainda é comum ouvir histórias de mulheres que adiam a maternidade por conta da carreira. O receio é que a chegada dos filhos diminua as oportunidades profissionais ou, até, seja motivo de demissão no retorno da licença-maternidade. Um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) mostra que, após 24 meses, quase metade das mulheres está fora do mercado de trabalho. A maior parte das demissões se dá sem justa causa e por iniciativa de quem o emprega. E quando buscam emprego, a maternidade também é muito questionada pelas pessoas que recrutam. Perguntas como: “Você tem filho?”, “Com quem vai deixá-lo para trabalhar?” ou “Tem planos de engravidar em breve?” ainda são comuns.

Segundo a consultora organizacional e coach executiva Caroline Marcon, fundadora da Marcon Leadership Consulting, a presença feminina no mercado de trabalho ainda está ligada à chegada de um filho, mas a maternidade deve ser considerada um impulso e não uma barreira na carreira da mulher. “Para que essas perguntas não sejam mais motivo de constrangimento, é preciso que o mercado aprenda a conviver com regras mais flexíveis, que permitam conciliar a criação de filhos e uma jornada profissional de alta performance”, afirma. Ela ressalta, inclusive, muitos casos de mulheres que deslancharam na carreira depois da maternidade, como foi o seu caso. “Me tornei mais corajosa, várias vezes pensei: ‘Se por mim não parece suficiente, vou fazer isso pelo futuro do meu filho’. Isso me gerava uma força surreal”, conta. Na visão de Caroline, a maternidade adiciona uma nova perspectiva ao ambiente de negócios, que, se bem aproveitada, pode trazer benefícios como inovação em produtos e serviços, e melhor relacionamento com as pessoas consumidoras e as que trabalham na empresa.

Mas, na prática, não é muito por aí. Até pouco tempo, Júlia Facure Fernandes, gerente de contas da Ambev no Lago Paranoá, em Brasília, hoje mãe de Cauã de 10 meses, não tinha esses benefícios em mente. Apesar de ter planos de ser mãe, tinha medo de a decisão impactar negativamente sua carreira. Quando entrou na companhia, há sete anos, lembra que pouco se falava sobre o tema. “Faltava visão de futuro. Lembro que a diretoria era composta quase na totalidade por homens, havia apenas uma mulher”, conta. Mas uma gravidez não planejada aconteceu e tudo mudou. “Estava trabalhando no interior quando soube e entrei em pânico. Queria crescer e a possibilidade de ficar afastada e não ter a mesma energia no trabalho me assustou”, diz. Ela ficou com tanto medo que a primeira pessoa que avisou foi seu gestor na época. “Não tem jeito. Esse medo está enraizado nas mulheres”, ressalta. Porém, a reação do líder tornou o processo mais leve. “Ele me perguntou do que eu tinha medo e me tranquilizou. Sua única preocupação era se eu estava bem.” Na volta ao trabalho, Júlia teve, inclusive, um desafio a mais ao ser convidada a trocar de área.

FILHOS NO CURRÍCULO

Durante a gravidez, Júlia conheceu, por meio da Ambev, a Filhos no Currículo, criada pelas amigas Camila Antunes e Michelle Levy, que ajuda empresas a se tornarem lugares mais acolhedores para mulheres que, como elas, precisam se desdobrar para dar conta das inúmeras demandas da maternidade e da carreira. A empresa trabalha em três frentes: consultoria, sensibilização e capacitação. “Muita coisa mudou na companhia desde que eu entrei. Hoje, a Ambev vem tratando com cuidado a questão, com a adesão de movimentos para falar sobre paternalidade, como a Filhos, e grupos de discussão entre mulheres”, diz.

A Filhos no Currículo nasceu com a chegada dos filhos de Michelle. “Sou mãe de dois meninos, Thomas e Alex. Com o nascimento deles comecei a repensar minha carreira. Perguntas como: ‘De que forma conciliar carreira e maternidade?’, ‘Qual o papel das organizações nessa equação?, ‘Como podemos entrar em um ambiente de trabalho que potencialize a chegada de um filho?’, começaram a surgir”, lembra. Segundo ela, a inspiração para a consultoria veio do entendimento que filho é uma potência. “A chegada deles nos traz habilidades que nos ajudam como profissionais. Conseguimos voar quando percebemos isso”, afirma.

‘‘É preciso que o mercado de trabalho aprenda a conviver com regras mais flexíveis, que permitam conciliar a criação de filhos e jornada profissional de alta performance” Caroline Marcon, consultora organizacional e coach executiva da Marcon Leadership Consulting

Uma análise realizada pela consultoria, em parceria com o Movimento Mulher 360, apontou algumas habilidades desenvolvidas pelas mulheres no período pós-maternidade. Para 74% das entrevistadas a paciência aumentou, para 57% a tolerância foi potencializada e 56% relataram melhor capacidade para definir prioridades. Mais empatia e criatividade também entraram nessa lista. “Consigo ler uma pessoa para além do que ela está dizendo, muito por conta da relação com meus filhos, trabalhar com empatia, respirar e ter paciência. Essas habilidades nasceram com meus filhos. Ter dois, então, é um curso de negociação intenso”, diz Michelle.

Júlia também desenvolveu competências com a chegada de Cauã. “Hoje sou mais empática e organizada, tenho mais energia e fortaleci minha inteligência emocional, habilidades essenciais no mundo do trabalho atual”, afirma.

 

Júlia Facure Fernandes, gerente de contas da Ambev no Lago Paranoá, com o pequeno Cauã

 

É PRECISO FALAR DE PARENTALIDADE

O olhar de Kareline Bueno, líder do grupo de afinidade de gênero da Gerdau, mãe de Pietro e grávida de quase nove meses, ampliou as práticas da companhia sobre esse universo. “Sempre nos preocupamos em não reforçar o estereótipo de maternidade: porque falamos só com as mães? Entendemos que o importante é falar sobre parentalidade. Enquanto não construirmos uma paternidade tão forte quanto a maternidade, vamos continuar reforçando vieses”, diz. E foi aí que a executiva levou o movimento Filhos no Currículo para a empresa, em 2020. “A ideia é incluir as famílias de forma geral, seja de duas mães, dois pais, avós adotivos etc.”, afirma. Em parceria com a Filhos, a Gerdau realizou ações de conscientização de líderes, empoderamento da mulher, cuidado no re – torno da licença-maternidade, entre outros programas. Em 2021, por exemplo, a Filhos no Currículo fez um movi – mento nas redes sociais, com a #meu – filhonocurriculo, que teve mais de 40 mil interações no LinkedIn, do qual a empresa participou. Para a executiva, todos ganham com isso. “Pietro foi meu grande MBA de comunicação e negociação”, afirma Kareline. “Nas empresas, lidamos com diferentes públicos e para cada um deles é preciso uma forma de se comunicar. Passei a ser muito mais assertiva em minha fala e a ‘escutar não só com os ouvidos’, mas com coração aberto”, completa. Do ponto de vista de gestão, ela reforça que pelo fato de a Gerdau trabalhar o tema, teve bons líderes durante a primeira gestão e seu retorno, e está segura em sair mais uma vez de licença-maternidade. “Isso não vai ser um viés, algo que define meu potencial e resultado”, completa.

Camila Antunes e Michelle Levy, criadoras da consultoria Filhos no Currículo

PROMOÇÃO ANTES DE VOLTAR AO TRABALHO

Amanda Caribé, que já foi questionada em uma entrevista de emprego se tinha planos de engravidar a curto prazo, é mais um exemplo do quanto a maternidade pode ser um impulso para a carreira, não um obstáculo. Ela foi promovida a gerente da Gafisa Viver Bem – uma nova unidade de negócios da construtora, antes mesmo de retornar da licença-maternidade. “Quando engravidei, fiquei assustada porque imaginava que meu retorno à empresa poderia atrapalhar minha carreira, pois sabemos o quanto isso ainda é um ta – bu, mas aconteceu o contrário: fui pro – movida”, diz. Segundo ela, apesar de a companhia ter tido uma postura empática e de respeito em sua gravidez, não esperava esse reconhecimento na volta ao trabalho. “Existe um preconceito no mercado de trabalho que atrela a maternidade à improdutividade e à baixa performance. Essa é uma narrativa ultrapassada que, felizmente, começou a mudar. Ser mãe foi sem dúvida a experiência mais transformadora da minha vida, algo potente e fonte inesgotável de energia e vontade”, explica.

‘‘Passei a ser muito mais assertiva em minha fala e a ‘escutar não só com os ouvidos’, mas com coração aberto” Kareline Bueno, líder do grupo de afinidade de gênero da Gerdau

Como se vê, não são poucas as competências desenvolvidas pelas mulheres depois da chegada dos filhos, e é importante que mais em – presas entrem nesse movimento e percebam a potência da maternidade para os negócios. “Em um mundo no qual a desigualdade de gênero insiste em continuar, as organizações devem se posicionar contra as disparidades vivenciadas pelas mulheres em seus lares, no ambiente de trablho e na sociedade”, reforça Andrea França, sócia da PwC Brasil, empresa que também é parceira da Filhos no Currículo. “As companhias precisam construir um ambiente acolhedor para as mães, os pais e seus filhos e, é claro, criar estratégias para que a parentalidade não seja vista como um empecilho para a carreiras, pois não é”, completa.