Por Paulo Vieira
Fotos Adrian Ikematsu
Muito se fala hoje em diversidade, liderança humanista, sustentabilidade – propósito –, mas, na hora do vamuvê, é o faturamento, o Ebtida, a relação dívida/geração de receita, o share, os tais resultados, enfim, que contam para o sucesso de uma biografia empresarial. Sob todos esses duros aspectos a Ânima Educação é um sucesso. Em menos de uma década e meia passou de duas ou três instituições de ensino superior espalhadas aleatoriamente pelo Brasil para uma potência com 310 mil alunos em doze estados. Há cerca de um ano, com a aquisição do grupo Laureate por R$ 4,6 bi, consolidou-se entre os principais grupos privados de ensino do Brasil. É o terceiro hoje em renda líquida. Em 30 de novembro, após anunciar aporte de R$ 1 bi em sua vertical de cursos de medicina, a Inspirali, o grupo teve seus papéis na B3 valorizados nesse único dia em 26%.
Mesmo assim, o parágrafo acima conta parte menor da história. Se tivesse de escolher a forma como gostaria de ser lembrado por seus pósteros, o paulista Daniel Castanho, 46 anos, cofundador e chairman da Ânima – ele já foi CEO, posto que agora cabe a outro cofundador, Marcelo Bueno –, certamente não abonaria o personagem que, atingida a meta, dobra-a, como na blague involuntária famosa. Estaria mais para sua autodefinição no LinkedIn: “inconformado por natureza”, “apaixonado pelo que faz” e “movido pelo desejo de transformar o país por meio da educação” – este o mesmo lema da Ânima. A tendência de tanta gente ao falar de si é edulcorar a biografia, oferecendo ao interlocutor um retrato bastante editado, mas dificilmente alguém que converse com Daniel, como coube ao repórter desta PODER, não sai contaminado por sua eloquência, alegria – tesão – ao falar de educação. E não se deve reputar esse ânimo ao histórico pessoal – Daniel tem pais educadores e foi ele mesmo um professor algo oficioso, dando aulas de reforço de física e matemática –, mas à importância da educação. Ela, afinal, é a base, a superestrutura, o eixo principal, o leito onde se assenta o que se entende por conhecimento. “Por que você vai para a escola?”, pergunta Daniel ao jornalista, para logo em seguida dar a resposta, à maneira dos professores de cursinho (e do ex-governador Geraldo Alckmin). “Para ser sócio da sociedade. Para conflitar seus próprios pensamentos. Para aprender a ouvir os argumentos do outro. A parte menor é o conteúdo técnico que se aprende.”
Pensa assim a pessoa física, pensa assim a pessoa jurídica. A visão de ensino da Ânima diverge bastante daquela ainda em voga por aí, que tem como representação simbólica um professor a escrever com giz numa lousa, ou, vá lá, com pincel atômico numa tela, diante de alunos sonolentos.
“Um curso é aquilo que fica depois que ele acaba”, manda Daniel, para em seguida afirmar que a Ânima não entrega conteúdo, “mas competências”. “Não temos mais matemática ou contabilidade. Temos business plan.” O desejo do chairman é fazer com que seu grupo educacional seja o “mais relevante do país” e isso não significa ter o maior número de alunos ou a maior receita gerada, mas, em plano muito distinto, ser aquele que, “se deixar de existir, mais irá fazer falta”. Para que as palavras não pareçam apenas isso, palavras, Daniel costuma citar um indicador objetivo, o Índice Geral de Cursos (IGC), a pontuação obtida por seus alunos no Enade, que mede o conhecimento de quem conclui um curso de ensino superior. Nesse quesito, os alunos das instituições da Ânima estão 83% acima da média, segundo dados do MEC; mas o que de fato importa a ele é afirmar o “valor agregado” de conhecimento dos universitários, e isso diz conseguir cotejando o IGC com as notas de seus alunos quatro ou cinco anos antes, quando aprovados na prova do Enem. Assim, multiplicando esse fator de conhecimento adquirido dentro da faculdade pela quantidade de alunos, Daniel se sente seguro para afirmar que seu grupo já é o mais relevante do país.
“Um curso é aquilo que fica depois que ele acaba. Quero que meu grupo educacional seja o mais relevante do país, aquele que, se deixar de existir, mais irá fazer falta”
SUBWAY E INTERNET
Embora talhado para a educação, Daniel bateu cabeça por outros setores antes de fundar a Ânima. Com vocação empreendedora, um tanto maverick, capaz de abandonar o curso de engenharia da Poli na bica de se formar – fazia administração na GV em paralelo e ali se diplomou –, encantou-se nos Estados Unidos com a rede Subway e quis trazê-la para o Brasil, sem sucesso. Depois, tornou-se sócio do restaurante Varanda e da gráfica Takano, ambos em São Paulo, e fracassou ao tentar comprar o jornal Gazeta Mercantil e a TV Manchete, órgãos de comunicação que estavam indo para o vinagre. Em 2000, como tanta gente, ficou à deriva com o esvaziamento da bolha da internet. Mas já que uma mudança na legislação havia pouco permitiu que as instituições de ensino pudessem ter fins lucrativos, achou que era hora de trafegar por ali. Com seus dois sócios, em 2003, adquiriu o Centro Universitário Una, de Belo Horizonte, pedra fundamental do que futuramente seria a Ânima. “O Una estava totalmente quebrado. Faturava R$ 30 mil, mas devia R$ 35 mil, R$ 5 mil para agiotas”, conta. Demoraria ainda mais três anos para integrar a próxima instituição, a Unimonte, de Santos. As dificuldades dessa nova aquisição são emblemáticas daquilo que embala a Ânima e de como é – ou era – estruturado parte do sistema educacional brasileiro. Depois de ter apresentado um plano de recuperação para a sócia e administradora Maria Ottilia Pires Lanza e fechado acordo, o negócio deu para trás. Os dois filhos de Ottilia decidiram de chofre tocar a universidade. Decepcionado Daniel e seus sócios reagiram de uma maneira inesperada para os padrões de uma empresa imersa no capitalismo selvagem. “Decidimos deixar todos os planos de ação da Unimonte com Ottilia”, diz. “Um ano depois ela me ligou dizendo que os filhos brigavam e que iria passar a gestão para quem poderia cuidar melhor da instituição – a gente.”
Algumas das instituições da Ânima, a famosa escola de gastronomia Le Cordon Bleu, parceria firmada em 2016, e a Universidade São Judas, adquirida dois anos antes
A família Lanza já havia sido proprietária da Morumbi, no começo dos anos 1970, que se fundiria com a Anhembi, que ministrava o primeiro curso superior de turismo do Brasil; muito mais tarde, a Anhembi-Morumbi, parte então do portfólio brasileiro do grupo americano Laureate, acabaria no cesto da Ânima. Foi uma rumorosa negociação em que o time de Daniel venceu a disputa contra a Ser Educacional. No processo, um acordo extrajudicial acabou sendo assinado e houve entrega de ativos, caso da rede FMU.
O setor educacional brasileiro passa por consolidação e profissionalização, mas quem se informa sobre a atividade apenas nas editorias de economia não tem ideia de como as universidades se estruturaram tempos atrás. Rememorando o caso Unimonte, Daniel descreve instituições formadas um tanto por inércia, como uma loja que cresce e passa a contar com diversos familiares em postos mais ou menos relevantes. “Como não tinha fins lucrativos, a família inteira era empregada e assalariada da instituição, era algo meio simbiótico. Aí tem biblioteca com nome do avô, prédio com nome do tio.” Mesmo assim, adquirir empresas de famílias talvez tenha sido mais fácil do que arrematá-las junto a fundações, como no caso da Una, em que foi preciso convencer todo um conselho – representantes do Ministério Público e do MEC incluídos – da pertinência do negócio. “Todo” não é força de expressão. Daniel e seus sócios não aceitavam divergências, e o resultado de 19 x 2 a favor dos paulistas não foi suficiente. “Tinha de ser por unanimidade. A gente estava ali para continuar a história daquela instituição. Não era uma estratégia. Precisávamos de todo mundo junto.” Numa segunda votação, os dois votos divergentes foram conquistados.
‘‘Você não ensina o que você sabe. Você ensina o que você é. Para criar uma universidade que forme protagonistas, pessoas que vão fazer a diferença em suas trajetórias, não posso dar porrada nos professores”
A ideia um tanto extravagante de que um comprador assume um negócio para mantê-lo mais ou menos como antes, ao menos conceitualmente, que embasa esse aparente capricho pelo convencimento dos 10% refratários do conselho do Una, é, na verdade, a dinâmica do crescimento da Ânima. “A gente não diz para quem entra ‘vista a camisa da empresa’. Diz ‘traga a sua’”, explica Daniel. “Eu quero que ela orne com as nossas outras camisas. Em vez de um monólito com um comando central, a visão da Ânima é bem outra: “Somos um mosaico de 2 mil empresas de dez pessoas cada, um grupo com 100 CEOs diferentes.” Para chegar a esse modelo horizontalizado, ele diz que é necessário dar “empoderamento, autonomia, confiança, accountability e incentivo ao erro honesto”. As sinergias são conquistadas com uma gestão organizada em squads que conseguem dar solução rápida para problemas já enfrentados por alguma das “2 mil empresas”, como, por exemplo, dificuldades no processo de matrícula. O acesso entre os diferentes níveis hierárquicos também tem de ser descomplicado. Daniel conta que, ao adquirir a Laureate, fez questão de, em reunião virtual com todos os novos colobaradores, passar seu número de WhatsApp para a rapaziada.
Quem chegou até aqui deve ter deduzido que as premissas de gestão coincidem com as premissas pedagógicas, e pode parecer divertido, embora ocioso, especular quais vieram primeiro. Talvez ajude para isso saber que Daniel abomina provas e vestibulares, que, para ele, equivalem a processos de comando e controle (e punição e medo). “Você não ensina o que você sabe”, diz, “você ensina o que você é.” “Para criar uma universidade que forme protagonistas, pessoas que vão fazer a diferença em suas trajetórias, não posso dar porrada nos professores.”
Todas essas ideias já vinham borbulhando ao longo dos anos, mas, no caso das aulas, a pandemia deixou mais explícita a necessidade de reformatação. Afinal, se o velho professor com sua caixa de giz já não conquista a atenção na classe, que dizer no ambiente virtual, com essa mesma figura explicando tediosamente seus conteúdos de PowerPoint numa sessão de Zoom? “Surreal”, como diz Daniel, que aproveita para exemplificar a dinâmica das novas aulas em quadrante, com um eixo para o espaço (os ambientes presencial e virtual) e outro para o tempo (aulas síncronas, ou seja, ao vivo, e assíncronas). O resultado são cenários distintos, que devem tirar proveito de cada situação. Como, por exemplo, um debate, o interior de um laboratório e em casa, a qualquer momento, com os estudantes dispondo de um conteúdo transversal e “incrível” – “algo que a gente pegue, digamos, do cinema”.
Os próximos passos do fundador da Ânima são ainda mais ousados. Daniel sabe que conhecimento é algo que nunca paramos de adquirir – e crê que há prazer nisso. Por isso, espera fazer com que seus alunos, após a graduação, sigam de alguma forma com a Ânima, consumindo outras disciplinas, com o grau acadêmico que melhor lhes convier. Numa hipótese que elaborou recentemente, ele quer propor às pessoas que, caso tenham de optar entre renovar a assinatura do Netflix ou seguir comprando créditos da Ânima, que fiquem com a segunda alternativa. Duríssima competição, ainda mais com aquele segundo professor, o da Casa de Papel, do outro lado do campo.
VERTICAL SAUDÁVEL
Foram dois fatos relevantes em sequência, nos dois últimos dias de novembro. Pelo primeiro, a Ânima anunciou aporte de R$ 1 bi em sua vertical de medicina, a Inspirali, pela gestora DNA Capital, que, em troca, adquiriu 25% do controle da subsidiária. De cara, as ações da Ânima na B3 subiram 26%, ficando nas semanas seguintes nesse novo patamar. No dia seguinte, mais um supertrunfo, a aquisição do controle do IBCMED, plataforma digital de formação acadêmica de profissionais de saúde que, segundo o comunicado oficial, já contou com 5 mil médicos em seus cursos. Ao fechar esses negócios, a Ânima busca incrementar o ecossistema de suas verticais, e saúde talvez seja a área mais crítica para o grupo. Por meio de diversos players parceiros e professores que atuam no setor, os alunos da Ânima vão tendo vivências que serão fundamentais quando se profissionalizarem, mas um próximo passo deverá ser a criação de um hub de emprego. As boas-novas sucedem as de outubro, quando Ânima e Vivo fecharam joint venture de educação online, fundamental no reposicionamento da Vivo como empresa que transcende o figurino da telefônica que só oferecia conexão de voz e dados.
A ABERRAÇÃO DAS DUAS ESCOLAS
Não dá para transformar o Brasil pela educação, o lema da Ânima, olhando apenas para o setor privado. Apenas 12% dos alunos do ensino médio, por exemplo, estudam em escolas particulares. Para Daniel Castanho, o problema nem é a inoperância de sucessivos ministros de Educação, mas a falta do que chama de uma “política de Estado”. “Não é ter um plano de governo. Educação para um país não pode ser prioridade, tem de ser premissa.” Daniel diz que lhe tira o sono saber que há uma discrepância qualitativa entre as escolas pública e privada – “verdadeira aberração” – e imagina que o mesmo sentimento que nutrimos em relação a nossos antepassados, que conviviam harmonicamente com a escravidão, perpassará nossos descendentes quando souberem que convivíamos com “dois tipos de escola” – “a dos nossos filhos e a dos filhos das pessoas que trabalham em nossas casas”. Daniel propõe uma espécie de “exame da ordem” na pedagogia, que possibilite remunerar melhor os professores de alto desempenho nessa avaliação. Para ele, o atual sistema, que incorpora bônus financeiros aos salários de professores que fazem cursos de pós-graduação, só fez criar um mercado de ensino a distância de pedagogia de qualidade inferior, sem reflexo na capacitação dos professores e, por consequência, na de seus alunos.