A NOVA INTELIGÊNCIA

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Nos anos pós-pandemia que estão por vir, a ordem é desenvolver as chamadas habilidades humanas, tanto no trabalho quanto na vida pessoal. Não basta ter formação acadêmica: tem que praticar a humildade e a solidariedade

Por Carla Julien Stagni

Especialistas em futuro acreditavam que faltava um símbolo que marcasse o fim do século 20 e o início de uma nova era. A Covid-19 surgiu e está sendo considerada esse marco. Futuristas acreditam que a pandemia está antecipando mudanças que já estavam em curso, como trabalho remoto, educação a distância, cobrança por sustentabilidade e a valorização das habilidades humanas. 

Outras transformações que estavam em fase mais embrionária, e talvez não fossem tão perceptíveis, ganharam sentido diante da revisão de valores provocada pela crise sanitária sem precedentes em nossa geração. Por exemplo, o fortalecimento de valores como solidariedade e empatia, bem como o questionamento do modelo de sociedade baseado no consumismo e no lucro a qualquer custo.

“O maior desafio para as pessoas nesse momento pós-quarentena é a reacomodação do cotidiano às nossas expectativas. Passamos quase dois anos sonhando com uma espécie de retomada do ponto em que fomos interrompidos pelo vírus e agora temos que interpolar na continuidade do processo aquilo que foi vivido nesse período – os lutos, as tristezas, as frustrações… vai ser um desafio recomeçar em outro ponto e não em uma continuidade de onde a gente parou”, afirma Christian Dunker, professor titular de psicanálise e psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Para ele, as pessoas devem se preparar para um momento diferente na vida. E podem até tirar proveito disso. “É propício para aqueles que querem, e podem, experimentar o sabor da mudança, de inventar um novo estilo de viver. Talvez mais consequente, mais fiel, eventualmente mais sincero em relação à experiência de ficar mais próximo de si mesmo nesses tempos de pandemia. Tivemos que nos reconciliar ou entrar em uma briga mais vertical com nós mesmos. O que sobrou disso pode ser usado para tentar um novo estilo de vida.”

No universo corporativo, o Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês) está constantemente atualizando a lista do que considera serem as competências necessárias para ser bem-sucedido no mercado de trabalho do futuro e sinaliza que, depois de tudo o que vivemos, elas vão além do conhecimento técnico. As principais características apontadas no mais recente relatório do evento, que reúne a elite econômica e global, indicam que, para se destacar profissionalmente até 2025, é necessário ter pensamento analítico e inovação, aprendizagem ativa e estratégias de aprendizado, resolução de problemas, pensamento crítico e criatividade. Há tempos a formação do ser humano deixou de ser algo com tempo definido para acontecer e se tornou uma jornada de vida que ganhou até um termo próprio, lifelong learning (algo como “aprendizado ao longo da vida”). Não podemos parar de evoluir porque, além de ser a chave da nossa sobrevivência em um mundo em transformação contínua, todos temos potências latentes que podem ser manifestadas, desenvolvidas e aprimoradas.

Segundo Fátima Zorzato, psicóloga especializada na sucessão de CEOs, avaliação de conselhos de administração e assessment de executivos, a inteligência geralmente é vista como a capacidade de pensar e aprender. Olhando para o futuro, outro conjunto de habilidades cognitivas pode ser mais valorizado para definir um bom profissional. “Em um mundo em rápida mudança é cada vez mais importante desenvolver a capacidade de repensar e desaprender. A maioria das pessoas prefere o conforto da convicção ao desconforto da dúvida. Em geral só damos ouvidos a opiniões que confirmem as nossas, tendemos a descartar ideias que nos façam pensar muito e vemos o desacordo como uma ameaça”, explica. “O custo disso pode ser bem maior do que se imagina. Portanto, mais do que nunca é importante valorizar soft skills, como resiliência, coragem, escuta ativa… não basta apenas ter preparo técnico, formação acadêmica”, completa a psicóloga, uma das headhunters mais prestigiadas do país e autora de O que Faz a Diferença – As Características e Oportunidades que Criam o Grande Líder.

A avaliação dela é compartilhada por Dunker, que acredita ser fundamental desenvolver a escuta como forma de “aumentar qualitativamente nossa experiência de prazer”. “Em vez de jogar gasolina na fogueira, devemos aprender o cultivo dos prazeres, a dilatar a experiência do prazer. Isso tem a ver com escutar… o próprio corpo, o outro, e que essa escuta seja lúdica, empática e inteligente. Nosso cotidiano está cheio de riquezas inexploradas. É a diferença que nos torna mais interessantes, não nossos próprios espelhos.” O tema é pauta de um dos bestsellers da atualidade. Em Think Again, o psicólogo e escritor Adam Grant propõe a criação de uma cultura que valorize o questionamento. Na obra, recém-publicada no Brasil pela editora Sextante e com o título Pense de Novo, Grant examina a arte de repensar como impulso para nos levar à excelência no trabalho e à sabedoria na vida. 

“Entre as histórias, ele conta a de Steve Jobs, que odiava celulares e, graças à escuta ativa, foi convencido por seus parceiros de trabalho de que deveria lançar o iPhone, que acabou se tornando o carro-chefe da Apple”, lembra Fátima Zorzato. “Isso mostra o quanto é necessário estar aberto a mudanças.”

Mas ter bom ouvido não basta. No mundo pós-pandemia outras tantas competências socioemocionais serão requisitadas e distinguirão inteligências. “Humildade vai subir no mercado, solidariedade vai junto, já que são coligadas”, aponta Christian Dunker. “Em queda estão sentimentos predadores, como individualismo, egoísmo, que se expandiram, mas aparentemente chegaram a seu limite, bem como seus efeitos corrosivos. A inteligência está prometendo voltar às paradas de sucesso, mas a inteligência verdadeira, capaz de incluir reflexivamente o outro, de incorporar contradições, e não transformá-la em oposição. Diria também que nossa capacidade de sonhar que está sendo tão ambicionada vai ser restaurada e, junto com isso, nossa capacidade de suportar pesadelos.” 

HABILIDADES DO FUTURO

NO TRABALHO:
Capacidade de trabalhar em cooperação;
Escuta ativa;
Soft skills como resiliência, coragem, intuição, sensibilidade e empatia;
Três requisitos para ser um líder de sucesso: intelectualidade – nariz erguido, mas para sentir o que acontece em torno e o que as pessoas têm a dizer; comportamento – coerente, fala e coloca em prática o que disse; e sensibilidade – capaz de entender e mobilizar pessoas.

NA VIDA:
Escutar o próprio corpo, o outro, e que essa escuta seja lúdica, empática e inteligente;
Praticar humildade e solidariedade;
Abandonar sentimentos predatórios, como individualismo, egoísmo, e seus efeitos corrosivos;
Ativar o gosto pela diversidade;
Recuperar o olhar viajante;
Restaurar a capacidade de sonhar.