Após 31 anos no Supremo Tribunal Federal, o juiz decano Marco Aurélio Mello se despede da corte em razão do que chama de “aposentadoria expulsória”. Conhecido como ministro do voto vencido, por ser o magistrado com maior número de decisões divergentes, ele se diz realizado por sua atuação na última trincheira da cidadania
Por Mari Tegon
Fotos Cristiano Mariz
Ministro indicado ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello, de quem é primo, o decano Marco Aurélio Mello pendura este mês a toga que vestiu nos últimos 31 anos. Em três décadas, o juiz carioca foi uma voz dissonante – ganhou o apelido de “voto vencido” por ser o magistrado com maior número de votos divergentes dos colegas – na corte e autor de decisões famosas e polêmicas. Durante o período em que esteve no Supremo, foi presidente da casa entre 2001 e 2003, criou a TV Justiça, que mudou a forma de trabalho da corte, comandou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por três mandatos e viu sete presidentes da República subirem a rampa do Planalto. Em entrevista exclusiva a PODER, Mello brinca que está se retirando do STF devido à “aposentadoria expulsória” pelos 75 anos completados este mês, data limite para que exerça o cargo, em alusão ao seu apego profissional e afetivo à cadeira. O magistrado fala sobre o futuro fora do Supremo, avalia a Lava Jato, critica a suspeição de Sergio Moro, diz que Lula deveria sair de cena e desistir de se candidatar novamente à Presidência e desaprova a banalização do processo de impeachment no Brasil, entre outros temas em pauta.
PODER: QUAL O SEU LEGADO E A SUA MELHOR LEMBRANÇA EM MAIS DE 30 ANOS NO SUPREMO?
MARCO AURÉLIO MELLO: Todo o período foi muito gratificante. Busquei servir com espontaneidade, com pureza da alma, e enfrentando os conflitos de interesse segundo o meu convencimento, a minha técnica e a minha formação humanística. Em termos de legado, dizem que foi a TV Justiça. Eu valorizo muito a comunicação e o projeto da TV saiu do meu gabinete. E depois, por sorte, substituindo o presidente Fernando Henrique Cardoso na Presidência, acabei sancionando a lei [que criou a TV Justiça]. Foi algo muito bom em termos de transparência, de publicidade, aproximando o Judiciário dos cidadãos e os cidadãos do Judiciário. Esse tento realmente tinha que dar certo e deu. Algo que torna o STF e o Judiciário mais transparentes.
PODER: A TRANSMISSÃO AO VIVO DA TV JUSTIÇA INFLUENCIOU ALGUM VOTO OU DECISÃO DO TRIBUNAL?
MAM: O que normalmente ocorre é uma atuação equidistante. Pouco importante estar sendo transmitida a sessão ou não. Agora é claro que a TV Justiça implica um controle externo do Judiciário. Isso porque os contribuintes podem acompanhar o dia a dia do Judiciário e cobrar, se for o caso, correção de rumos, o que é positivo em termos de democracia.
PODER: O SENHOR PARECE TER SE HABITUADO ÀS SESSÕES VIRTUAIS APÓS ESTRANHÁ-LAS NO INÍCIO. COMO DEVERÁ SER DAQUI PARA FRENTE?
MAM: Vamos a uma explicação: quando nós estávamos nos reunindo fisicamente na turma ou no plenário eu sempre sustentei que o olho no olho é importantíssimo. Que a troca de ideias entre os componentes do colegiado resulta em uma solução mais adequada para o conflito. Agora veio a pandemia. E com ela o lado positivo, já que eu pude praticamente esvaziar o meu gabinete [de processos]. Cheguei a ter no plenário, quando as sessões eram físicas, cerca de 150 processos liberados aguardando na fila. Julguei na sessão virtual. Agora temos essa dualidade entre a sessão virtual, em que não há a troca de ideias, e a sessão por videoconferência, em que nós estamos em uma sala virtual, trocando ideias e podemos discutir os casos. A virtual é mais célere, já que há um período dentro do qual um integrante do tribunal pode se manifestar. E a sessão por videoconferência pressupõe a inserção do processo em pauta a cargo do presidente. Mas vamos ver até onde vai essa pandemia. O tribunal já pensa em retomar as sessões físicas a partir de setembro. Eu até disse ao presidente [Luiz] Fux, me convoque que estarei presente (risos).
PODER: AS SESSÕES VIRTUAIS E POR VIDEOCONFERÊNCIA O AJUDAM A SE DESLIGAR DO STF COM UMA DESPEDIDA MENOS ABRUPTA, MENOS SOFRIDA?
MAM: Nunca tivemos tempo para uma convivência fora do colegiado ante a carga de processos. Eu, desde o início, em 1978, quando integrei o TRT (Tribunal Regional do Trabalho) do Rio de Janeiro, sempre trabalhei em casa. Sempre fui um juiz de trazer processos para casa, ao contrário do que ocorre com a maioria, que separa as atuações. Como eu sou casado com uma mulher que também é juíza, desembargadora do Tribunal de Justiça, a Sandra De Santis, ela não me cobra tempo, nem reclama. E nós dois tocamos a nossa vida profissional.
PODER: QUAL A SUA AVALIAÇÃO SOBRE O RESULTADO DA OPERAÇÃO LAVA JATO E DA SUSPEIÇÃO DE SERGIO MORO?
MAM: Logo que surgiu a Lava Jato um senador da República, que não vou mencionar o nome, disse que precisavam enterrar a operação. E parece que, de fato, ela foi enterrada com as últimas decisões do Supremo. O que, sob o meu olhar, é muito ruim, porque, quando em uma operação dessas há desvios quanto ao procedimento, se tem recurso contra esses desvios. Se fizermos um levantamento veremos que a Lava Jato tem muito mais aspectos positivos do que negativos. Quanto à problemática do juiz Sergio Moro, eu ainda não compreendo como alguém que foi tido pela sociedade brasileira como um verdadeiro herói, porque colocou muito poderoso na cadeia, de repente é execrado. Algo aí no sistema não fecha. E, para mim, ele continua merecedor da confiança dos brasileiros.
“Essa história de apoiar impeachment de presidente é muito ruim. Tem que ser reservado o afastamento a situações excepcionalíssimas”
PODER: COMO EXPLICAR À POPULAÇÃO QUE O EXPRESIDENTE LULA PASSOU ILEGALMENTE 580 DIAS NA CADEIA? CASOS COMO ESSE TIRAM A CREDIBILIDADE DO PODER JUDICIÁRIO?
MAM: Essas idas e vindas, tal dito pelo não dito, são péssimas. E acabou o Supremo ressuscitando politicamente o ex-presidente da República Luiz Inácio da Silva. Eu fui voto vencido, mas a maioria decidiu, paciência. Agora aguardemos 2022 para ver se ele vai se apresentar candidato à Presidência ou não. Ele cumpriu dois mandatos diretamente e cumpriu um mandato e meio indiretamente quando esteve na cadeira maior do país a presidente Dilma, período em que ele, evidentemente, estava, mesmo que não formalmente, como grande conselheiro dela. Eu penso que o ex-presidente já prestou serviços à pátria e que é hora de nós termos a abertura de oportunidades para outros candidatos.
PODER: A DEMOCRACIA ESTÁ MAIS CONSOLIDADA HOJE OU QUANDO O SENHOR ASSUMIU COMO MINISTRO?
MAM: Hoje ela está, sem dúvida alguma, mais consolidada. Ante os incidentes que nós tivemos até aqui e suplantamos. Isso robustece a democracia. Não há campo para saudosismo, para retrocesso. Nós estamos avançando e aperfeiçoando a cada passo o Estado Democrático de Direito.
PODER: TEMOS ACOMPANHADO A CPI DA COVID NO SENADO E O AUMENTO DOS PEDIDOS DE IMPEACHMENT DE BOLSONARO. O PRESIDENTE DEVE SER IMPICHADO?
MAM: O presidente foi eleito com 57,7 milhões de votos, foi escolhido pela maioria dos eleitores. Tem um diploma que assegura um mandato de quatro anos. Essa história de apoiar impeachment de presidentes da República é muito ruim. Tem que ser reservado o afastamento a situações excepcionalíssimas. As instituições estão funcionando, o presidente tem um perfil de atuar, precisamos admitir esse perfil. Contudo, é claro que, se demonstrado um desvio de conduta, que haja a glosa do desvio de conduta no campo do próprio Legislativo, com um processo de impedimento, ou no Supremo com um processo crime por crime comum. Vamos aguardar, e não presumir o excepcional. E verificar o lado bom da governança nos dias de hoje e que o presidente da República seja feliz nesse ano e meio que tem pela frente.
PODER: A DISCUSSÃO DO VOTO IMPRESSO É OPORTUNA?
MAM: Quando nós tínhamos o processo de votação por cédulas, as impugnações eram reiteradas. E várias foram julgadas procedentes. Em 1996 eu presidi as primeiras eleições informatizadas. De lá para cá, não tivemos uma impugnação que colocasse em dúvida a segurança da urna eletrônica, que é o sistema que mais preserva aquilo que deve ser preservado: a vontade do eleitor. Não cabe agora ficar, como costumo dizer no jargão carioca, “vendo chifre em cabeça de cavalo”. Supondo o excepcional, o interessante é a ironia: o presidente da República, que critica a urna eletrônica, foi eleito mediante esse sistema. Só que agora ele diz que houve fraude, senão teria sido eleito no primeiro turno. Como não é a presunção…
PODER: TEMOS CADA VEZ MAIS A PARTICIPAÇÃO DE MILITARES NO GOVERNO, INCLUSIVE DE INTEGRANTES DA ATIVA LIDERANDO MINISTÉRIOS. COMO O SENHOR VÊ ISSO?
MAM: Sob a minha ótica, pela proporcionalidade e pela conveniência, o militar da ativa só pode estar no comando das Forças e no Ministério da Defesa. Agora, nos demais ministérios, um militar da ativa, general, como auxiliar do presidente da República, sob o meu modo de ver, é inconcebível. E nós temos muitos civis capazes de auxiliar o presidente.
PODER: A QUE O SENHOR ATRIBUI OS ATAQUES DO PRESIDENTE BOLSONARO E INTEGRANTES DO SEU GOVERNO AO STF?
MAM: O abandono ao entendimento entre os poderes. Os poderes da República são harmônicos e independentes. Devem atuar cada qual em sua área prevista na Constituição Federal. Aí se aguarda a indispensável urbanidade. Eu só posso atribuir as críticas ao Supremo a arroubos de retórica. A algo que é dito sem consistência, sem demonstrar-se a procedência de alguma imputação. O que não é bom, porque o exemplo vem de cima. E, quando o presidente da República critica a última trincheira da cidadania, que é o Supremo, ele sinaliza à população, que não acompanha o dia a dia do STF, algo ruim, algo nefasto. Não se avança culturalmente assim. Que o presidente da República passe a nos dar um bom exemplo.
PODER: O PRESIDENTE BOLSONARO DISSE QUE NOMEARIA ALGUÉM “TERRIVELMENTE EVANGÉLICO” PARA SUBSTITUÍ-LO NO STF, POSTO QUE DEVERÁ SER DO ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO ANDRÉ MENDONÇA. TEME QUE A CORTE SEJA TOMADA POR IDEOLOGIAS?
MAM: Não temo. A Corte é um colegiado e o colegiado é um somatório de forças distintas, nos completamos mutualmente. Assumida a cadeira, o que tem ocorrido é que o ocupante atue com independência absoluta. E quais são os requisitos constitucionais para se ter a indicação pelo presidente da República para ocupar uma cadeira no Supremo: elibada conduta e domínio do Direito. A religião não compõe uma exigência da lei das leis que a todos indistintamente submete. Eu, por exemplo, sou católico por batismo e poderá vir a me substituir um evangélico ou alguém que professe outra religião, isso é normal. Que o presidente da República seja muito feliz na escolha e que esse ato complexo se complete com a sabatina no Senado e a aprovação, se for o caso, ou a rejeição do candidato. Isso é o que nós esperamos, que as instituições funcionem segundo o figurino legal e constitucional.
PODER: O QUE ESTE NOVO MINISTRO DEVE FAZER PARA AJUDAR O BRASIL NESTE MOMENTO?
MAM: Perceber a envergadura da cadeira. Perceber que depois que o Supremo bate o martelo não se tem a quem recorrer. Que o voto dele mesmo sendo uno se soma a outros e acaba formando a maioria. E atuar com desassombro e com a pureza da alma. Atuar objetivando servir, não desservir à sociedade.
“Eu só posso atribuir as críticas ao Supremo a arroubos de retórica. A algo que é dito sem consistência, sem demonstrar-se a procedência de imputação”
PODER: O QUE SERÁ DA SUA VIDA FORA DO SUPREMO?
MAM: Eu ficarei em Brasília porque vim para cá em 1981, deixando a Cidade Maravilhosa, onde tenho duas filhas, tenho irmãos, tenho parentes. E conto também com uma base lá no Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca. O meu domicílio que é residência com ânimo definitivo será mesmo em Brasília, porque eu moro a dez minutos do tribunal, em uma chácara, em contato com a natureza. Permanecerei aqui. Me sinto um homem super-realizado porque servi aos meus semelhantes. E servi evidentemente dentro de minhas forças. O que pretendo fazer: eu diria nada. Hoje presido um instituto em Brasília que é o Instituto UniCeub de cidadania, vou incrementá-lo me dedicando à área em si acadêmica. E se acionado para emitir o meu parecer, neste ou naquele caso, emitirei. Mas não vou digladiar em uma concorrência desleal ante o cargo até aqui ocupado, mais de 42 anos como julgador em colegiado. Não vou digladiar com advogados na disputa de clientes. Eu sou um homem realizado intelectualmente e no campo econômico-financeiro.
PODER: ACEITARIA COMPOR ALGUM EXECUTIVO?
MAM: Não. Eu já servi, inclusive a dois senhores que são o Supremo e o TSE, e não pretendo cargo público mesmo em comissão. Muito menos para ser auxiliar de alguém. Eu preservo muito a cadeira que ocupo, que para mim é a cadeira mais importante da República, mais importante do que a de presidente da República.
PODER: O SENHOR NUNCA PENSOU EM SE CANDIDATAR À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA?
MAM: Não. Deixo ao primo [Fernando Collor] que abraçou a política, hoje é senador, já foi presidente da República. Nunca pensei realmente em abraçar nada na política. A minha política sempre foi institucional considerado o Supremo. E vou repetir: sou um homem, com 75 anos, super- -realizado. Eu tenho que agradecer as oportunidades que tive, como agradeci na despedida em sessão do colegiado. E passo agora a honrar essas indicações do passado.