Nossa rotina foi totalmente alterada e muitas percepções mudaram, sobretudo o lar e o nosso jeito de morar
Por Nivaldo Souza
O reconhecimento facial não é tecnologia nova. Mas o aumento da sua demanda em prédios residenciais durante a pandemia chamou a atenção do síndico profissional Alessandro Paris, que administra 28 condomínios das classes A à D em São Paulo. “Nós temos condomínios de alto padrão e do Minha Casa Minha Vida que adotaram essa tecnologia. Isso tem tudo a ver com a pandemia, porque as pessoas têm medo de usar a mão para abrir uma porta”, conta.
O comportamento mostra como inovações ganharam escala no setor imobiliário, impulsionadas pelo distanciamento social, resultando em novos serviços e produtos. A pandemia aflorou também novos desejos no jeito de morar. E se há um sonho oriundo do isolamento pandêmico, seu nome é espaço. O setor entendeu o recado. “O mercado está sempre atento às tendências. Mas esse movi- mento se exacerbou em 2020, quando começamos a entender que a pandemia seria algo de longo prazo e traria consequências maiores do que imaginávamos”, observa o presidente do Secovi-SP, Basilio Jafet.
O setor encomendou a pesquisa “Um novo imóvel para um novo consumidor” à consultoria Brain Inteligência Estratégica, visando entender como potenciais compradores de oito capitais vão adquirir seu imóvel, a partir da reclusão doméstica. O estudo revelou algo prosaico: o brasileiro sonha com mais banheiros e varandas.
As incorporadoras terão de caprichar na oferta de suítes e remodelar as varandas gourmet, vistas como brinde de luxo. A área externa foi excluída da maioria dos empreendimentos porque o m2 é até 50% mais barato que nos cômodos. Mas as varandas passaram a ser desejadas por 80% dos consumidores. “O normal era pensar a varanda como espaço gourmet. Agora, se entendeu que ela tem múltipla função: virou local de trabalho no home office, para tomar sol, de mesa para refeição e lugar do churrasco. A varanda ganhou um novo sentido em design, layout e comunicação [de marketing nos folders] para atrair os consumidores”, afirma o diretor da Brain, Fábio Tadeu.
A culinária como hobby foi a descoberta de 79% das pessoas, que agora desejam cozinhas maiores. Já um espaço doméstico para trabalhar é cobiçado por 87%, sendo que os mais jovens preferem áreas híbridas, como parte da sala ou da varanda como opção para o home office. Caberá aos arquitetos apresentarem soluções atraentes para fisgar os clientes. Até porque, pesquisa da KPMG com 361 executivos indicou que, pós-pandemia, 87% das empresas manterão um modelo misto de trabalho a distância e presencial.
As novas percepções espaciais tendem a limitar ainda o avanço dos studios de 15 m2 a 42 m2, realidade recente em centros urbanos. “Nos últimos dois anos, a participação desse segmento chegou perto de 34% dos lançamentos, com 20 mil unidades na cidade de São Paulo. A nossa percepção é de que essa modalidade vai cair e se estabilizar de 15% a 20% em novos empreendimentos”, avalia Tadeu.
‘‘O normal era pensar a varanda como espaço gourmet. Agora ela tem múltipla função e virou local de trabalho no home office”
ERA DOS SERVIÇOS
A automação predial também foi potencializada. Soluções como aplicativos para gerenciamento das portarias sugiram, reforçando o papel dos condomínios como ambientes de serviços. É o caso da organização do delivery. O aumento na chegada de pacotes lotou as portarias. Surgiu daí um sistema de armários controlados por aplicativo pelos moradores, no qual o entregador ou porteiro coloca a encomenda em lockers – depois, o destinatário recebe um QR Code para abri-lo. Houve ainda edifício instalando pequenos elevado- res para transportar alimentos da portaria ao apartamento.
E a função de porteiro estaria com os dias contados? A portaria eletrônica conquistou terreno. Ela permite ao morador informar uma central a quilô- metros de distância o dia de chegada, o horário e o documento de um visitante. Ao chegar, a visita se identifica via interfone com a central, que libera sua entrada. Até o tradicional mural de recados foi repaginado digitalmente. O anúncio de locação de vaga na garagem passou a ser feito por aplicativo acessa- do por todos os condôminos. Na SKR criou-se um app com algumas dessas funcionalidades. “Estamos negociando o uso do aplicativo em 300 condomínios”, diz o gerente Carlos Castro.
ASSINATURA E MULTIPROPRIETÁRIOS
O jornalista esportivo e youtuber Thiago Asmar aderiu ao aluguel por assinatura quando se mudou este ano do Rio de Janeiro para a capital paulista, onde apresenta o programa Canela- da, da Jovem Pan. A modalidade custa mais que locar um apartamento, mas atraiu o apresentador pelas comodidades como a internet rápida, coworking, sala de reuniões, minimercado, academia de ponta e a oferta de bicicleta elétrica. “É muita facilidade para a pessoa que quer evitar o gasto de mobiliar um apartamento do zero”, compara.
Asmar optou por uma unidade da Housi, empresa da incorporadora Vitacon. O CEO Alexandre Frankel afirma que o modelo por assinatura permitiu potencializar no mercado brasileiro outra novidade: o multifamily properties (propriedade compartilhada). O sistema em que várias pessoas são donas do mesmo imóvel é comum nos Estados Unidos para investimentos. Isso agora é possível por aqui. Segundo Frankel, quem deseja ter um apartamento de R$ 1 milhão e não tiver o valor para investir passou a poder aplicar cerca de R$ 170 mil em uma cota do imóvel, por exemplo. O investi- dor recebe como renda parte do valor de locação. “Trouxemos esse modelo há dois anos e meio, fracionando um apartamento em seis cotas. Uma pessoa pode comprar uma cota ou as seis, recebendo seu provento [parte do valor de locação] conforme a participação”, diz o executivo.
FUGA DA URBE
A bióloga Bruna Soares de Oliveira e o cientista de dados Vitor Zago Paciello aproveitaram o teletrabalho para fugir do barulho urbano. Pais do pequeno Ícaro, de apenas 1 ano, eles viam como problema ao desenvolvimento do filho a falta de uma varanda no apartamento alugado de 70 m2 na zona sul. Os três se mudaram em maio para Jundiaí, cidade a 60 km de São Paulo. Vitor continuará de home office por tempo in- determinado, mas agora vivendo num sobrado com 90 m2 e condomínio com piscina, quadra poliesportiva e, o mais importante, quintal para Ícaro dar os primeiros passos. “No apartamento sem varanda e com barulho, ele não tinha espaço para gastar energia. Ele tem dormido melhor agora”, conta a mãe.
‘‘A gente já via as pessoas fazendo investimento em casas no interior. Mas havia a impossibilidade de rotina de trabalho e estudos dos filhos, e isso foi quebrado pela pandemia”
O próximo passo da família será comprar um terreno em condomínio fechado na região para construir o imóvel próprio. Eles não estão sozinhos nesse movimento. As casas voltaram à preferência dos consumidores depois de terem sido preteridas por apartamentos.
CEO da JHSF, Thiago Alonso de Oliveira explica que clientes de alto padrão já haviam mirado a bússola de desejo por espaço para o interior, favorecendo empreendimentos em cidades a um raio médio de 150 km de São Paulo, onde a oferta de serviços é similar à da capital. Mas a pandemia será um divisor de águas, especialmente se o ensino escolar evoluir para um modelo misto (presencial e remoto). “A gente já via as pessoas fazendo investimento em casas no interior maior que na capital, o que traduzia um desejo de estar mais tempo naquele lugar. Só havia a impossibilidade de rotina de trabalho e estudos dos filhos, mais isso foi quebrado pela pandemia”, afirma.
A empresa reforçou a aposta no complexo Fazenda Boa Vista, em Porto Feliz, a cerca de 160 km da capital. O empreendimento tem residências a partir de 370 m2 e terrenos acima de 3 mil m2, com infraestrutura e lazer que inclui campo de golfe, spa, restaurante e unidade de campo do Hotel Fasano. Em 2020, a JHSF comprou o terreno adicional com 6,6 milhões de m2 para ampliar o complexo. A aquisição custou R$ 134 milhões e visa atender à demanda crescente. “Ir para um local onde se possa contar com os confortos de uma cidade grande passou a ser um imperativo”, diz Oliveira.
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INOVAÇÃO INC.
A experiência de comprar imóveis mudou na pandemia com o fechamento de estandes de vendas. As visitas virtuais são a nova forma de conhecer quartos, salas, cozinhas. Já as plantas em 3D rejuvenesceram as tradicionais maquetes. A regulamentação da assinatura eletrônica de contratos de compra e venda arejou o ambiente de negócios. “Estamos fugindo das garras da burocracia”, brinca Jafet, do Secovi-SP.
A impressão 3D em obras deu passo experimental e inédito no país, a partir da construção da primeira casa em concreto com a tecnologia, na região metropolitana de Natal (RN). Feito da startup universitária 3D Home-Construction. É cedo para afirmar como pode evoluir. China e Estados Unidos apostam na sua viabilidade econômica daqui a pelo menos dez anos. Foi promissor, contudo, que estudantes da Universidade Potiguar realizassem a primeira obra em 3D da América Latina.
O match das startups com as construtoras, aliás, é fruto da pandemia. A Yuny optou por investir na aceleração na InBuilt, que criou um aplicativo por meio do qual é possível ver na tela do celular em realidade aumentada elementos “escondidos” – como as tubulações de água, esgoto, gás e os fios elétricos. “Isso simplifica muito a vida de quem precisa fazer uma reforma ou a manutenção do imóvel”, resume o diretor da incorporadora Rafael Castelli.