Por Paulo Vieira
Uma é no cravo, a outra na ferradura. Ou melhor: uma é na cabeça, a outra também, e depois a terceira, a quarta, a quinta, a sexta, até o elemento deixar de respirar. A morte brutal por espancamento do cidadão negro Beto Freitas, num Carrefour de Porto Alegre às vésperas do Dia da Consciência Negra, em novembro, mostrou ao mundo que o Brasil também pode ter seus George Floyd – na verdade, o país sempre teve inúmeros George Floyd, mas nem todos os holocaustos negros são capazes de sensibilizar cidades inteiras, como aconteceu nos Estados Unidos em 2020. Que o digam as crianças Ágatha, João Pedro, Kauê, Kauan – há mais, escolha a sua.
O racismo estrutural brasileiro, a despeito dos muitos negacionistas de plantão, tampouco permitiu que o Palácio da Alvorada hospedasse algum presidente negro. Nem mesmo o Jaburu teve como inquilino um vice-presidente negro. Nisso estamos outra vez atrás dos Estados Unidos, que vê agora em janeiro chegar ao poder a chapa Joe Biden e Kamala Harris. Se Biden veste bem o figurino do macho adulto branco sempre no comando de que fala Caetano Veloso na música “O Estrangeiro”, Kamala é a primeira vice-presidente americana negra e ainda filha de pais imigrantes.
É consensual entre especialistas que a força simbólica da vitória de Kamala é grande, mas terá ela mais importância do que a própria eleição de Obama à Presidência em 2008? Para José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, os dois eventos têm a mesma “potência”, mas a agenda racial, que emergiu dramaticamente em 2020 com o assassinato de George Floyd, pode dar mais força a esse tema no próximo governo democrata. “[Joe] Biden foi obrigado a fazer um pacto formalizado e publicizado com os negros, algo que nem Obama fez. Ele assume com uma agenda [racial] instaurada”, disse por telefone a PODER.
Já para Petrônio Domingues, professor da Universidade Federal de Sergipe e autor do livro recém-lançado Protagonismo Negro em São Paulo, a vitória de Kamala tem “representatividade”, e isso pelo simples fato de ela ser a primeira mulher negra a ocupar o cargo de vice-presidente nos Estados Unidos. “A representatividade é um fator importante na construção e na afirmação da identidade negra, servindo de fonte de inspiração para todo esse segmento populacional”, diz. Mas, diferentemente de José Vicente, para Domingues não é possível ver na vitória de Kamala a força simbólica do triunfo de Obama, dada a disparidade dos cargos. Ele lembra, no entanto, que a idade avançada de Biden – 82 anos em 2024, quando o novo presidente poderá concorrer à reeleição – poderá colocar Kamala em condições de pleitear a cabeça de chapa democrata. “Não estranharia se ela se credenciasse como potencial sucessora de Joe Biden. É muito cedo para esse tipo de prognóstico, mas Kamala é uma política emergente, de grande carisma, com perspectivas de alçar voos mais altos.”
Organizador do livro Movimento Negro Unificado, José Adão de Oliveira é bastante mais cético com a ascensão de Kamala. Para ele, discussões capitais do movimento negro, como a das reparações às famílias descendentes de antepassados escravizados, saem de cena quando negros “juram a Constituição e a bandeira americanas”. “Obama retomou o diálogo com o movimento negro, mas ao jurar obedecer as regras [do jogo democrático], ele se tornou um homem do poder, não era então mais negro. Com Kamala vai ser a mesma coisa, ela irá jurar obedecer à Constituição, como deve ser, e aí vai deixar de ser a Kamala
que conhecemos.”
AGENDAS
Estar na chapa vitoriosa que irá suceder um presidente problemático como Donald Trump talvez exija que agendas como a de igualdade racial não tenham precedência diante de tantas outras que foram abandonadas nos últimos quatro anos, como a da política ambiental e o multilateralismo. Joe Biden terá nesses campos bastante trabalho para desfazer as ações do antecessor, e isso pode ser a razão de o novo presidente ter divulgado suas prioridades assim que foi consagrado vencedor, entre elas o desejo de trazer os Estados Unidos de volta ao Acordo de Paris, que visa combater o aquecimento global. Mas o fato de Trump ter também empurrado dramaticamente os limites da perseguição aos imigrantes ilegais e à repressão aos movimentos civis acaba por falar muito à história de Kamala, filha de pai jamaicano e mãe indiana, e talvez demande respostas imediatas. No discurso de vitória em Delaware, na noite do primeiro sábado de novembro, Kamala fez questão de mencionar a mãe, que chegou aos Estados Unidos com 19 anos, vinda da Índia. “Talvez ela não tenha imaginado isto [a eleição da filha]”, disse, “mas ela acreditava firmemente que um momento como esse era possível.” Se a retórica de Obama é considerada estado da arte entre os recentes protagonistas americanos do poder, Kamala de certa forma também reclamou seu espaço nesse panteão naquele dia. “Se eu sou a primeira mulher no posto, não serei a última”, seguiu. E endereçou uma fortíssima palavra final às crianças, “independente de gênero”. “Seu país passa uma mensagem clara: sonhem com ambição, liderem com convicção e procurem se enxergar de uma forma que os outros talvez não enxerguem, simplesmente porque eles jamais se viram dessa maneira antes.”
Para a deputada federal e ex-senadora pelo Rio de Janeiro Benedita da Silva, do PT, figura importante do movimento negro, é importante levar em conta que os negros nos Estados Unidos estão longe de ser a maioria da população, como acontece no Brasil (somando-se os totais de quem se autodefine pardo ou preto). Lá eles são apenas 13%, menos de ¼ dos americanos que se dizem brancos. “E no entanto foi feito esse enfrentamento, que levou a sociedade americana a se manifestar [sobre o tema do racismo]. No Brasil há ainda uma mobilização muito tênue”, disse a deputada a PODER. A parlamentar, contudo, vê avanços por aqui. “Agora há mais suporte e recursos para que candidatos negros possam disputar cargos majoritários, aos poucos vão sendo criados mecanismos que ajudam.” Foi graças a uma consulta de Benedita ao Tribunal Superior Eleitoral que o STF decidiu aplicar já nas eleições de 2020 a cota financeira de 30% dos recursos dos partidos para as candidaturas negras – as candidatas mulheres também têm direito ao mesmo instrumento. Muitos partidos, que trabalhavam com a perspectiva de que a cota só passasse a vigir em 2022, chiaram.
Com histórico de severidade em seus tempos de procuradora-geral da Califórnia, Kamala ficou bastante marcada por ter assumido uma posição de endurecimento que teve como efeito colateral o incremento da população carcerária do estado. Assim, deverá ser cobrada pelos ativistas que veem relação direta entre o racismo estrutural e a política prisional do país – como no Brasil, nos Estados Unidos os negros predominam nas prisões. De qualquer forma, a preferência das mulheres negras pela chapa Biden-Harris, de 91% nesse universo de votantes, mostra claramente quanto a figura de Kamala foi importante e galvanizadora na vitória democrata.
Nesse dado eleitoral, vê-se muito claramente que black lives matter. O problema é que, enquanto essa advertência fizer sentido, vidas negras seguirão tendo menos importância do que outras – e pessoas como Beto Freitas devem continuar pagando com as próprias.
COOL HARRIS
Apesar de ser pessoa de hábitos simples, quase no limite do descolado, Joe Biden não é a figura “cool” da chapa democrata vitoriosa. Kamala Harris, sim. Há algo que se pode chamar com segurança de “estilo” em suas aparições. Nos pés, por exemplo, ela não dispensa pares da mais atemporal e clássica família do famoso tênis Converse All Star – a Chuck Taylor. Pares mesmo: ela já informou que tem um branco; um preto, de couro; com cadarço; sem cadarço; um para o calor e outro para o frio. Kamala também parece ter escolhido com seriedade a roupa com que faria o elogiado discurso da vitória, em Wilmington, em 7 de novembro. O discreto terno branco e o laço sob o pescoço foram vistos como peças que reforçavam as “mensagens de unidade e emancipação” contidas em seu discurso, como escreveu o consultor da CNN americana Oscar Holland. A cor branca, como lembrou Holland, sempre esteve associada ao movimento sufragista feminino, sendo também usada por Shirley Chisholm, primeira negra americana a ser eleita para o Parlamento dos Estados Unidos, em 1968. Quando soube que vencera, Kamala telefonou para Biden de um gramado, no que parecia ser um parque, dizendo que “eles haviam conseguido”. Estava de abrigo de corrida Nike – cool, como sempre.