A liderança feminina em questão

Crédito: Getty Images

A psiquiatra Natália Mota analisa o viés de gênero que habita o inconsciente coletivo

Por Natália Mota*

Quem começou primeiro? Quem é causa e quem é efeito? Na ciranda de eventos que seguem seu curso no rio caudaloso da história nos perdemos. E segue ele o curso, nos aglomerando por dentro até fazermos parte desse coro, até somarmos nele mais histórias de mais mulheres que tiveram suas trajetórias interrompidas pelas circunstâncias da vida. Suas escolhas direcionadas no curso invisível desse rio que chamamos de sociedade, com a qual compartilhamos tantas crenças inconscientes. Ingênua mulher que acredita que sua decisão de desistir é exclusivamente sua, ela apenas não vê que pertence ao rio.

O problema é um velho conhecido de toda mulher que almeja uma carreira profissional: o teto de vidro. Quantas somos nos altos cargos políticos, da magistratura, da academia? Quantas de nós tomam decisões e contribuem no debate que definirá as regras do jogo? Parte disso tem raízes no viés de gênero que habita o inconsciente coletivo. São nas pequenas escolhas cotidianas que grão a grão formam as bordas que podam os caminhos das mulheres que um dia foram meninas sonhadoras.

Essas líderes nos fazem falta. O olhar de cuidado, a experiência de vida que compartilha o cotidiano não nos representa nas instâncias de poder. E assim seguimos ensinando nossas futuras líderes que esse mundo não é para elas, fazendo com que desistam mesmo antes de tentar. Esbarram na falta de confiança e no sentimento de não pertencimento que lhes domina nos momentos cruciais de desafio. É justamente por não se identificar com seus líderes que uma garota constrói para si o destino de nem tentar. E então, quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?

Tão certo como o ovo veio primeiro é saber que a construção de um viés de gênero ao longo dos tempos é o fator oculto que explica esse ciclo vicioso. O ovo já existe desde muitas espécies anteriores às aves, da mesma forma o viés de gênero que habita o inconsciente coletivo existe mesmo antes de vários cargos de liderança. E como esperar que representantes tão distantes desse universo encontrem qualquer lógica em mudar o curso da trajetória que ciam?

Nesse momento, testemunhamos a luta das mulheres para se manterem ativas no novo modelo de mercado de trabalho. Mulheres que antes cuidavam de jornadas duplas e triplas de trabalho, cuidando de suas carreiras somadas aos cuidados domésticos, e de seus filhos e idosos, na pandemia se viram trabalhando em jornadas simultâneas, sendo, sem dúvida, fortes candidatas ao sofrimento mental pós-pandemia depois de meses de pouco repouso e tanta ansiedade. Sua dedicação invisível continuará sendo o fator oculto que explicará por que a carreira acadêmica de mulheres, principalmente as mães e negras, declinou tanto em seu curso.

E como mudamos o curso do rio? Uma mulher apenas que acorde não dá conta da força hercúlea da história de tantas ancestrais. Mas juntas somamos, nas pequenas escolhas, na decisão de ajudar a mulher que está próxima, porque queremos que todas nós sejamos bem-sucedidas. Sucesso de uma mulher é despertar de outras, que se somam, acordam e empurram nosso futuro para outras trajetórias.

*Natália Mota é psiquiatra com mestrado, doutorado e pós-doutorado em neurociências pelo Instituto do Cérebro da UFRN e fundou o grupo SCIGirls, rede de apoio a mulheres na ciência