Por Dado Abreu
Foto Paulo Freitas
Há algo que tem tirado o sono de Patricia Ellen da Silva. Desde que deixou o comando da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo, quando foi peça-chave na equipe do exgovernador João Doria, a executiva decidiu empreender na chamada economia verde. Ela aposta no potencial do Brasil como protagonista global da transformação para um mundo de baixo carbono. O tema faz parte da agenda estratégica dos CEOs das grandes empresas e promete ser fator decisivo para a sobrevivência das organizações – e da humanidade – nos próximos anos.
Se migrou para um setor tão estratégico e necessário, qual o motivo de preocupação? Patricia diz que falta “entendimento e consciência” da urgência do tema. “Não temos tempo de esperar as eleições ou um novo governo. O Brasil pode, deve e merece liderar essa transformação em prol da descarbonização e se tornar uma superpotência verde”, disse, em entrevista a PODER.
Ela agora ataca em duas frentes. A primeira é a Aya Initiative, um ecossistema digital e colaborativo em que ela pretende juntar empresas, ONGs, startups e instituições para criar soluções de descarbonização da economia; a segunda é a Systemiq, consultoria internacional na qual a ex-secretária acaba de assumir a presidência da operação brasileira. A seguir, confira os principais trechos da conversa com a PODER:
NOVA ECONOMIA
“Entrei fundo no trabalho de desenvolvimento econômico sustentável no governo de São Paulo. Viajei o mundo inteiro com essa agenda e vi como o Brasil virou pária na questão. Estudei o projeto e, hoje, se tem algo que me tira o sono é a falta de entendimento e de consciência na urgência em tratar o tema. Não podemos esperar as eleições, não dá para aguardar um novo governo. O setor privado tem de liderar essa transição, daí minha decisão de recuar estrategicamente da gestão pública. Quero ajudar empresas que estejam comprometidas com a descarbonização da economia. Cuidar da intersecção envolvendo justiça social, justiça climática e tecnologia.”
NÃO OLHE PARA CIMA
“Criamos [Patricia e o empresário Alexandre Allard] a Aya Initiative, um hub de soluções para descarbonização da economia, um ecossistema colaborativo em que grandes empresas, instituições e ONGs vão convergir para criar a espinha dorsal da transformação para o baixo carbono no Brasil. Trabalhando em três esferas: convocação e convening; conteúdo e avaliação; e as soluções. Vamos juntar os formadores de opinião e os principais tomadores de decisão para que eles tenham acesso a um conteúdo rico de relatórios e informações sobre a descarbonização e os desafios de cada setor. Lançamos uma parceria com o Pacto Global da ONU, com a Future Carbon, e precisamos juntar mais forças. O Brasil tem que se unir e liderar essa agenda, senão seremos liderados. Quem hoje mais compra crédito de carbono barato na Amazônia? A Amazon. É isso que a gente quer? Não está claro para o empresariado como estamos nos enfraquecendo, é como no filme Não Olhe para Cima – o asteroide já está aqui e estamos brigando por bobagens.”
UNIÃO SISTÊMICA
“Não quero trabalhar sozinha, queremos estar juntos com os melhores do mundo. Tenho uma enorme admiração pelo impacto que a Systemiq causa e por isso aceitei o desafio de comandar a operação no Brasil. É uma consultoria global com operações no Reino Unido, Holanda, Alemanha, Indonésia e Brasil que se propõe a resolver problemas sistêmicos complexos para uma economia de baixo carbono. Tenho dito, brincando, que entrar de sócia foi a parte mais fácil, difícil foi convencer os europeus de que o Brasil precisa liderar a transformação verde. Montei um plano de negócios para quadruplicar a operação no Brasil nos próximos dois anos, trazendo sócios estrangeiros para cá, investindo pesado na transformação. E eles toparam, aprovaram por unanimidade a minha entrada e o business plan. Foi muito bonito. Pretendemos lançar o maior relatório sobre a Amazônia ainda este ano, na COP27 [Conferência da ONU sobre Mudança do Clima, que acontecerá em novembro, no Egito].”
O CHAMADO
“Sempre fui uma pessoa que recorre à natureza como cura na vida. De tudo. Desde sempre. Minha avó era indígena e meu avô garimpeiro, por parte de mãe. Por parte de pai, meu avô trabalhava em uma fazenda, em Sergipe, e minha avó veio para São Paulo criar 16 filhos às margens do rio Pinheiros. Meu pai, sempre que tinha uma oportunidade, transformava qualquer terreno baldio em horta. Então essa proximidade com a natureza, essa necessidade, é uma coisa muito forte em toda a minha família – imagine que meu avô, aos 78 anos, com esclerose, andou 15 km sozinho e foi morrer dentro de um rio em Uberaba. Na pandemia eu passei por um processo muito desafiador: pessoal, profissional, físico e emocional. Em julho do ano passado, quando as coisas começaram a melhorar, falei para o governador [João Doria]: ‘Preciso de uma semana de folga’. Fui para a Chapada Diamantina (BA) e a conexão com a natureza me tocou muito, fiquei extremamente emocionada. Depois, em outubro, fui para o Acre e atravessei de Rio Branco até Cruzeiro do Sul vendo o desmatamento da Amazônia. Cheguei a uma aldeia dos shanenawas e àquele processo de desconectar, de vivenciar a cultura de um povo. Percebi que queria dedicar todo meu tempo, não parte, a esse resgate da sociedade com a natureza. E que talvez fosse a hora de integrar tudo o que eu já fiz na vida, que a melhor forma de contribuir era voltando às grandes empresas, onde passei 20 anos da minha carreira, acelerando o processo de descarbonização.”
“Não tinha ideia que a política podia ser tão territorialista, machista. Me formei em Harvard, mas pessoas estavam preocupadas com meu sobrenome, Da Silva”
SERVIÇO PÚBLICO
“O serviço público te dá senso de propósito. Saí do governo com vários sentimentos. Primeiro, gratidão. Não teve um dia, mesmo nos mais difíceis da pandemia, que eu não me senti grata por estar ali, por estar viva. Fico até emocionada. Acho que a gente, às vezes, tenta esquecer o que passou, estivemos no limite entre a vida e a morte por um período muito longo. Um segundo sentimento vem de dever cumprido. Foi difícil? Sim. Maior desafio da minha vida? Sim. Mas eu estava no lugar certo para ajudar muita gente. Não tinha intenção político-partidária, estava totalmente presente, era a minha escolha. E tinha conhecimento, havia acabado de liderar uma empresa de tecnologia em saúde, por isso teve essa sincronicidade especial. Fui enviada para uma guerra, sem saber que tinha ido para uma guerra, mas confiante porque estava preparada para a trincheira. Saí, sem dúvida, com sentimento de dever cumprido. Foi um enorme privilégio poder executar o verdadeiro significado do serviço público. Ter dedicado três anos sem esperar nada em troca.”
MUNDO CÃO
“Não tinha ideia que a política era tão dura, que podia ser tão territorialista, machista, classista. Me formei em Harvard, mas as pessoas estavam preocupadas com meu sobrenome, ‘Da Silva’. Aí você começa a entender e viver de perto a história da política brasileira, das famílias, que há 20, 30, 40 anos estão ali, possuem fazendas nos mesmos lugares, é tudo muito amarrado. O governador João Doria me deu muita autonomia, confiança, uma relação de muito respeito, mas o entorno era o típico da política, de um estado muito conservador como São Paulo, em todas as formas, que nunca teve sequer uma vicegovernadora mulher.”
VERDE É FEMININO
“Tenho trabalhado muito com a ideia de que o futuro é verde e feminino. Meu objetivo é trazer mulheres para a pauta da descarbonização de uma forma mais técnica. A descarbonização global é um espaço de hegemonia masculina, isso é evidente até na Europa, que está na vanguarda da transformação energética. Precisamos mudar isso. Quando a gente ocupa espaço, criamos um precedente que abre outros espaços para ainda mais mulheres. Porque não adianta apenas ocupar, é preciso mais, é preciso abrir espaços.”
NO CONTRAFLUXO
“A política ambiental do Brasil é um grande desafio para acelerar a descarbonização, um entrave. Ainda mais se compararmos com países europeus que têm avançado bastante na regulação, nos incentivos. Nas minhas viagens, pude perceber como a imagem do Brasil se deteriorou de 2019 para 2021. Mas não temos tempo para lamentar, nem de esperar outra eleição. Por isso tenho me cobrado tanto nesse lugar, em me colocar à disposição para unir o empresariado, mostrar que esse futuro verde já é um presente, é agora, e que o Brasil pode, deve e merece liderar essa transformação com ou sem política pública. É muito grave o que está acontecendo. Cientificamente, a janela global, para a reversão desse processo, é de três a cinco anos. O futuro chegou. E ele é verde.”