INVESTIMENTO DE CAUSA

Mario Fleck || Crédito: João Leoci

Por Sergio Leo

Engenheiro mecânico de formação, Mario Fleck só mexeu em motores na faculdade: há décadas é um respeitado especialista nas engrenagens dos negócios e empresas. Por 14 anos foi executivo da consultoria Accenture, outros 15 na equipe de comando da Rio Bravo Investimentos, ele hoje é um dos sócios da AcNext, espécie de clube de investimento que combina fortunas e experiência de um grupo de amigos investidores. É um otimista em relação ao país, mas não economiza palavras ao criticar a “bagunça” na gestão econômica e política.

Ele está também à frente do que o mercado chama de Spac (sigla em inglês para Companhia com Propósito Específico de Aquisição), empresa lançada em bolsa para aplicar o capital em negócios promissores: a Rose Hill, que captou US$ 143 milhões e agora busca oportunidades de participação acionária em todo o mundo. Apesar do excesso de “improviso” e de “inexperiência” na condução de questões importantes a cargo do governo, o Brasil está na disputa. A chance de recuperar o atraso e consolidar bons investimentos no país, diz Fleck, está enorme diante da revolução tecnológica que transpõe, do mundo analógico para o digital, não só a comunicação nas empresas, mas processos de produção e distribuição e sua própria infraestrutura.

Da sigla da moda ESG, acrônimo em inglês de meio ambiente, responsabilidade social e governança, o executivo admite que, infelizmente, as preocupações ambientais e sociais ainda não são decisivas para a escolha dos investidores. Mas há um movimento “crescente” nessa direção; certas alternativas de negócio já foram, por isso, riscadas de seu caderninho, diz. Governança é a palavra-chave. À revista PODER, ele explicou o porquê, na entrevista da qual publicamos os principais trechos.

SITUAÇÃO DO PAÍS
“Na conjuntura nacional, é essa bagunça: o Brasil, cada vez que chega perto da eleição, fica supervolátil, turbulento, ainda mais quando tem um governo polêmico e uma polarização. Junta um monte de incompetências… é inegável que, mesmo que você se esforce, predomina muito mais no governo a falta de competência do que brilho. Não se consegue hoje listar coisas brilhantes das quais se possa se orgulhar; em compensação, pode haver uma lista de coisas que nos envergonham: falta de planejamento, de visão, de propostas de país, muito improviso, muita inexperiência. O cenário nacional vai ficar assim até acabar o processo eleitoral.”

Mario Fleck || Crédito: João Leoci

RETROCESSO NA ECONOMIA
“Não é só uma questão de turbulência: está feia a coisa; com a inflação que não estávamos mais acostumados, e esse cenário de fura ou não fura o teto. Aquelas coisas legais que aconteceram no Brasil, de responsabilidade fiscal, de que parecia que nos livraríamos da corrupção em escala endêmica, industrial, um monte de gente que nunca se acreditou indo para a cadeia; esse processo todo sumiu, evaporou, não se tem mais certeza se acabou, ou se está voltando todo o processo de corrupção, a situação política com toda essa história do Centrão e um governo refém dele. Voltamos, sei lá, décadas atrás: inflação fora de controle, taxa de câmbio que não se sabe hoje se vai para cima ou para baixo, os contratos, tudo vira um ponto de interrogação.”

CENÁRIO
“É lamentável que, no Brasil, hoje, nossa sensação seja de estar 30 anos lá atrás. Podíamos estar 30 anos na frente. Em compensação, temos a sensação de que o Brasil é indestrutível; a combinação de incompetência com corrupção ainda não conseguiu destruir o Brasil. É excelente notícia, mas é frustrante: se nos últimos 50 anos não tivéssemos esses acidentes, onde poderíamos estar? O Brasil poderia ser uma das cinco maiores economias do mundo e não ficar como estamos hoje, sem plano, sem visão, sem proposta, sem competitividade.”

OPORTUNIDADES
“Tem algumas coisas compatíveis com o cenário internacional que são resistências fortes a esse cenário turbulento. Da revolução industrial para cá, nunca se viu uma confluência tão gigante de vetores de transformação, por causa, principalmente, mas não exclusivamente, da tecnologia. Há empresa que não tem um funcionário, um metro quadrado de escritório e funciona em uma mesa com um computador. E tem receita, lucro, impacto. Afeta a vida das pessoas tanto no trabalho como no lazer, e na educação. Produto, processo, tecnologia, infraestrutura, tudo se digitalizou. Setor financeiro, industrial, de saúde, de lazer… Me fale um, não existe um setor da economia que não esteja repensando seus processos, suas estruturas. É uma situação de oportunidades, como se jogassem todas as cartas no chão, tudo que se aprendeu nos últimos 50 anos, e estamos aprendendo tudo de novo. Vai atrapalhar, vai chacoalhar? Mas precisamos ter essas novidades, a educação revolucionada pela tecnologia, a medicina, a maneira como a gente interage. Talvez a pandemia tenha acelerado esse processo todo de comunicação digital; não compensa integralmente, mas é um elemento na direção contrária à dessa destruição que é a bagunça nacional.”

QUEDA DE AÇÕES É ESTOURO DA BOLHA DIGITAL?
“O equilíbrio entre oferta e demanda nunca é perfeito, por isso a graça do mercado. Quando você bota mais capital do que tem capacidade de absorver, ou inflaciona, ou expande, ou cria a sensação de bolha. Como no mercado imobiliário: ao ver oportunidade de construção, todo mundo sai comprando terreno, construindo e, de repente, se passam cinco anos e não tem mercado, porque ele não andou necessariamente na mesma velocidade. Hoje, de fato, temos um mundo excessivamente líquido, com capital para tudo que é lado, influenciado talvez por todas as ajudas dos governos para injetar dinheiro nas economias, crescimentos maiores e menores de países como a China etc. O capital está ocioso e abundante atrás de projetos. Pode ter muito projeto sem chance de sucesso que vai conseguir capital e valorizações absurdas, como parece ser os casos recentes (com fintechs). Mas ao longo do tempo, assim como a Amazon não desapareceu da lista de pontocoms lá atrás, consolidou, está lá, é lucrativa, relevante, impactante, um monte de negócios vai desaparecer, um monte vai desidratar e os sobreviventes serão os mais bem estruturados, mais bem organizados, mais bem pensados… É difícil, em um momento como este, identificar claramente o que é uma Amazon e o que será uma x-pontocom que desaparece.”

ORIENTAÇÃO AOS INVESTIDORES
“No longo prazo, o mais importante são as variáveis de sustentabilidade da proposta, a questão institucional: se tem uma governança que deve funcionar em longo prazo, ou tem um monte de sócios brigando, gente que pensa diferente… Se lembrar da privatização no Brasil, de repente, juntou o cara da banana com o do trem e o do petróleo, e fizeram um consórcio para entrar na privatização de telecom. Meia hora depois, estava todo mundo brigando, ninguém entendia nada do que estava fazendo, porque entrou na onda do oba-oba. A sustentabilidade de longo prazo significa ter um modelo de governança que tenha talento, competência, visão estratégica compartilhada. Um grupo que tenha pensamentos complementares, mas tenha uma visão de direção. Vários desses casos vão sobreviver em longo prazo por causa disso. Qual vai ser a taxa de câmbio, a taxa de juros, o governo, a economia? Se você tiver uma boa proposta, uma boa solução para um problema importante e um bom time, com governança bem estruturada, tanto faz.”

ONDE INVESTIR EM INOVAÇÃO E TECNOLOGIA
“Na Spac, a Rose Hill é o que o mercado gosta de chamar de agnóstica. Não é só [investir no] setor financeiro. Vamos falar do setor industrial? Vamos falar da indústria 4.0, porque os equipamentos são robotizados, tem chips espalhando por tudo quanto é lugar, tem big data, dados em abundância. Deve ser agnóstico não por esporte, mas porque, se você focalizar muito, concentra demais seu risco.”

BRASIL, DESTINO DE INVESTIMENTOS
“A gente tem um monte de problemas, mas a vizinhança é bem pior: a destruição na Argentina e na Venezuela, o vai e vem na Colômbia e no Peru… O Brasil pode flutuar, mas tem uma robustez, uma dimensão continental: 60% a 70% das oportunidades na América Latina estão no Brasil. É incrível como ainda se vê no Brasil empresas familiares, muito sólidas e que foram competentes em driblar os desafios. Eu mesmo era presidente da Accenture, no Plano Collor, e ouvia: ‘Como faz, não tenho dinheiro para fazer pagamento, não tenho dinheiro no banco, tenho de dar dinheiro para os funcionários…’. Tinha inflação de 2% ao dia; como olhar a contabilidade e tirar uma conclusão; onde me basear para a tomada de decisões? Essa escola do Brasil produziu um conjunto muito forte muito competente, empresas que estão aí até hoje. E ainda tem empresas surpreendentemente sólidas no setor de varejo, desde casos muito conhecidos, como a história famosa do Magazine Luiza, as cadeias de shopping centers muito estruturadas, setores de manutenção, de prestação de serviços, de grupos, espalhados pelo Brasil, não necessariamente no eixo Rio-SP.”

CRITÉRIOS ESG
“O ESG é uma tendência, sem dúvida, principalmente nesse mundo tão integrado, onde notícias correm tão rápido, as informações estão acessíveis em todo lugar, o tempo todo. Mas eu diria que é um processo um pouco mais lento de transformação. Gradualmente, você vê as pessoas nas empresas migrarem nessa direção, tenho certeza de que têm em sua estrutura uma presente preocupação com relação a suas escolhas, decisões de investimento. Para chegar a um ponto em que seja predominante, acho que falta um pouco. Mas é crescente. Falando de ESG de uma maneira mais genérica, se houver um check-list que diga: ‘Você só vai investir se fizer uma investigação profunda disso’, eu vou olhar a governança com certeza. Então, o ‘G’ da sigla é questão obrigatória. Nós aqui na AcNext não entramos se vemos confusão, nebulosidade na governança, se não está claro quem manda, qual a história da turma no comando; se não há uma visão compartilhada, tudo isso faz parte da governança. Vamos entrar em um negócio poluente, de carvão? Não. Agora, vamos entrar exclusivamente em projeto que resolveu o problema climático de São Paulo? Também não. Talvez possa ver aspectos ligados à economia de energia, tecnologias de energia renovável, isso interessa. E só elas? Também não. Mas também, claro, não vou entrar noutro lado, numa termelétrica.”