Quatro momentos em que religiosos brasileiros contestaram o poder
Quatro momentos em que religiosos brasileiros contestaram o poder
14/setembro/2023 por Lincoln César
Compartilhe
Assim como na Argentina, em que o cardeal Jorge Bergoglio, hoje papa Francisco, teve de se mover em meio às atrocidades do regime militar – o cardeal teria protegido diversos padres, embora haja também acusações de colaboração –, muitos religiosos brasileiros bateram de frente com a ditadura. Um momento bastante cinematográfico, pode-se dizer, ao arriscarem a batina e a vida, foi durante a missa de sétimo dia que celebrou a morte do estudante Edson Luís, de 17 anos, abatido pela polícia em meio a uma manifestação contra a carestia no Rio. A morte de Edson desencadearia a gigantesca marcha dos 100 mil e, paradoxalmente, daria força para a decretação, em dezembro de 1968, do famigerado Ato Institucional 5, o AI-5. Mas de volta aos padres: o Exército havia proibido atos públicos e cercou a igreja da Candelária, a que mais de 600 pessoas compareceram para prestar a última homenagem ao estudante. Centenas de soldados da cavalaria da PM então cercaram o templo, dispostos, talvez, a baixar o sarrafo nos fiéis. Quinze padres então deram-se as mãos, organizando um corredor para que todos pudessem sair da missa em segurança. Como escrevem em Brasil: uma Biografia as autoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, o crítico literário Otto Maria Carpeaux “gaguejou, emocionado: ‘Inesquecível, padres’.” (Crédito: IEA/USP)
Outra missa em memória de um estudante morto pela ditadura, Alexandre Vannucchi Leme, desta vez em São Paulo, em 1973, na catedral da Sé, levou a outro grande cerco da polícia a um templo. A missa oficiada pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns, com a ajuda de outros 24 padres reuniu 3 mil estudantes. Dom Paulo, contudo, seria mais lembrado pelo ato ecumênico que celebrou junto com o pastor presbiteriano James Wright e com os rabinos Henry Sobel e Marcelo Rittner. Os religiosos e cerca de 8 mil pessoas se juntaram pela memória do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nas dependências militares paulistanas onde se praticava a tortura. O Exército alegou tratar-se de suicídio, ainda que Herzog, intimado na noite anterior em seu trabalho, na TV Cultura, tenha ido espontaneamente à sede do chamado Doi-Codi no dia de sua morte. Sobel reafirmou que o judeu Herzog havia sido morto pela ditadura, indicando que seu sepultamento não se daria na área destinada aos suicidas do cemitério Israelita. O culto ecumênico em memória do jornalista, também na catedral da Sé, com gente se espalhando pelo adro e pelas laterais da igreja, foi um ponto de inflexão na barbárie daqueles anos, vindo a desembocar, ainda que muitos anos depois, na redemocratização. (Crédito: Acervo SJSP)
Numa das igrejas de arquitetura mais bonita e arrojada do Brasil, a de São Domingos, em São Paulo, assinada pelo alemão Franz Heep (dos edifícios paulistanos Itália e Jaraguá), foram celebradas algumas das missas mais engajadas – perdão pelo termo um tanto démodé – da cidade. A paróquia foi a “capital” dos dominicanos, que se envolveram diretamente nos movimentos de oposição à ditadura, em alguns casos com desfechos violentos e melancólicos. A ALN (Ação Libertadora Nacional), de Carlos Marighella, teve apoio entusiasmado dos religiosos, que tinham atribulada vida “civil”, mantendo outros empregos ou estudando em universidades. Em entrevista à Folha de S.Paulo em 1998, o dominicano frei Betto, expoente da Teologia da Libertação, disse que pela igreja passaram figuras perseguidas pelo regime como José Dirceu e Vladimir Palmeira, e que, ainda que seus companheiros não tivessem “pegado em armas”, eles davam guarida e mesmo suporte logístico e financeiro aos procurados. Sete freis, entre eles Betto, foram presos em novembro de 1969, e alguns deles foram barbaramente torturados. A morte de Marighella é vinculada à delação sob tortura de dois desses dominicanos, versão que Betto não contesta, mas relativiza, inserindo participação ativa da CIA no processo. O livro que ele escreveu, Batismo de Sangue, tornou-se filme em 2007, com Caio Blat e Daniel Oliveira no elenco, e protagonismo na narrativa de frei Tito, o único religioso do grupo que não acabou condenado em São Paulo, mas exilado, em Paris. Assombrado pelo que viveu, acabou se suicidando. (Crédito: Reprodução)
Diz-se que o Brasil é um país pacífico, forjado com pouco derramamento de sangue. Nada mais distante da realidade. No período imperial, conflagrações e revoltas explodiram em todo o território nacional com regularidade incomum. A província de Pernambuco, de reconhecida tradição revolucionária, assistiu em 1824 à eclosão da Confederação do Equador, que tinha como meta a proclamação de um sistema republicano inspirado nos Estados Unidos, inaugurado havia quase meio século. Nesse movimento despontou o frei Joaquim do Amor Divino, o frei Caneca (no traço de Murillo la Greca), que fez seus estudos no seminário de Olinda. Com a repressão estimulada por d. Pedro I, o movimento separatista se consolidou, e se estendeu também por vilas de províncias contíguas, como Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Mas o Império redobrou a aposta e os efetivos militares, retomou Pernambuco e diversos líderes da Confederação foram assassinados e presos. Quinze deles foram condenados à pena capital, mas o frei mereceu uma, digamos, distinção. Como não houve nenhum carrasco disposto a tirar a vida do religioso por enforcamento, o método tradicional, frei Caneca acabou fuzilado. Tinha 46 anos. (Crédito: Murillo la Greca/Reprodução)