AS AGRESSÕES NÃO ABALARAM A MINHA FÉ NA DEMOCRACIA E NO BRASIL”, DIZ CÁRMEM LÚCIA, NA FLIARAXÁ, SOBRE OS SEIS MESES DOS ATAQUES DE 8 DE JANEIRO

Foto: Drigo Diniz @fliaraxa

Por redação da Poder

“Apesar dos pesares e das catimbas, que não são poucas, as agressões contra os muros, paredes e equipamentos não abalaram a minha fé na democracia e no povo brasileiro. Estou aqui usando o botom ‘democracia inabalada’, mas nem precisaria”, disse a ministra Cármem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, na noite de sábado, 8, na 11a edição da Feira Literária de Araxá (Fliaraxá). Cármem Lúcia surpreendeu a organização da feira literária ao chegar de surpresa ao evento que reuniu mais de 200 escritores brasileiros na cidade mineira, entre quarta, 6, e este domingo, 9. O festival em Minas Gerais debateu questões raciais e homenageou a escritora e jornalista Eliana Alves Cruz, autora de ‘Solitária’, seu primeiro romance contemporâneo, sobre mãe e filha que moram em quarto de empregada. Homenageou também Mário de Andrade, em celebração aos 130 anos de nascimento do escritor brasileiro e patrono do festival. A Fliaraxá recebeu ainda autores como Itamar Vieira Júnior, Sérgio Abranches, Jamil Chade, Eugênio Bucci, Tom Farias, Jeferson Tenório, Márcia Wayna Kambeba, Cidinha da Silva e Lisa Ginzburg.

Depois de assistir à mesa do escritor Itamar Vieira Júnior, autor do best-seller Torto Arado, entre outros escritores, a ministra foi convidada a subir ao palco pelo anfitrião e curador da feira, o jornalista Afonso Borges. Com mediação do cientista político e escritor Sergio Abranches, a ministra e ex-presidente do STF, nascida em Minas Gerais, abriu a sua fala relembrando o “Dia da Infâmia”. A data assim batizada marcou os seis meses dos ataques e depredações na Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro deste ano.

Cármem Lúcia e o escritor Itamar Vieira Júnior, autor do Torto Arado

A ministra relembrou ainda os 35 anos da promulgação da Constituição, que serão completados em outubro deste ano. Cármem Lúcia falou sobre o poder da palavra e da literatura para a democracia, arrancou risadas com seus causos inspirados e foi aplaudida pela veemência de sua defesa à democracia brasileira. A seguir, os principais trechos:

LITERATURA, LIBERDADE E LIBERTAÇÃO

“Estar num sábado à noite na minha amada Minas Gerais, conversando sobre a arte da literatura e a arte de viver com o outro de forma amena e alegre, seria o bastante para dizer que eu continuo mantendo a fé no Brasil e nos brasileiros. A literatura me dá não só o espaço para viver a liberdade que a constituição assegura mas a libertação que todos nós, seres humanos precisamos. A palavra igualdade, que tantas vezes o Brasil ignorou, é a palavra que vira a vida de todos nós. Assim se faz a reunião da liberdade, espaço no qual nós convivemos democraticamente, com a literatura, que é a possibilidade de sonhar a libertação.”

“DESUMANIDADES NÃO CAEM DO CÉU”

“Somos um povo de muitas humanidades , como foi lembrado pelo Itamar Vieira Júnior, mas somos também um povo de muitas desumanidades . Mas as desumanidades não caem do céu e nem vem do inferno. São a construção de todos nós. E a ordem que nós temos há 35 anos é a de que é objetivo da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária. Quem vai construir , quem está com o dever, por ordem constitucional, de construir somos nós cidadãos brasileiros, que estamos aqui nessa sala. A democracia encontra a literatura na hora em que a gente fala de inspiração mas também na transformação que a obra literária é capaz de fazer por todos e por cada um de nós.”

“VEJO A ESTUPIDEZ NATURAL COMO UM PROBLEMA MAIOR QUE A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL”

“A literatura nos ensina e nos dá a possibilidade de nos vermos e de ver o outro. Eu tenho todas as cismas possíveis com a Inteligência Artificial mas, para mim, a estupidez natural é um problema muito maior pra mim do que a Inteligência artificial, que a gente vê por aí. Ou seja, se
a inteligência artificial é um problema, a estupidez natural é um problema maior ainda . A estupidez não dói e as pessoas podem exercê-la plenamente .”

 

foto: @fliaraxa instagram

DOM CASMURRO, NAMORO E SININHOS

“Eu li Dom Casmurro, de Machado de Assis, na infância e li num tempo em que eu não fui nem um pouco feliz. Eu era interna num colégio de freiras com um pouco mais de 10 anos. Eu não gostava daquela disciplina alucinante de tocar sininho às 5 da manhã para acordar, tocar sininho para tomar banho. Depois que eu comecei a namorar, me disseram: ‘Você vai ouvir sininhos’. Eu respondi: ‘Ah, se é isso de ouvir sininhos não vai dar certo. Porque, pra mim, ouvir sininhos não é uma coisa boa. Mas o colégio Sacré Coeur me deu uma coisa boa: havia lá uma biblioteca que era um encantamento só. E quando eu li Dom Casmurro eu dizia: ‘Que absurdo, eu , Capitu, as mulheres… nós não traímos’. Anos depois, li o livro de novo e pensei: ‘Que cara chato esse Bentinho. Se Capitu não traiu é porque ela é uma boboca’. Há uns 15 anos, peguei o livro de novo , e pensei: ‘Eles tiveram um caso e a Capitu? coitada!’ Isso significa dizer: cada livro é um livro. Cada vez que a gente lê um livro, o autor se multiplica como ser humano e multiplica a nossa humanidade. Nos anos 1980 eu lia uma obra literária por semana. E me lembro que quando li Tuareg (do espanhol Alberto Vázquez-Figueroa), eu brigava com o personagem. E é isso a obra literária. Ela transporta você, possibilita a transformação porque tira você de você mesmo e faz acontecer o encontro com o outro.”

“APRENDI A LER COM CINCO ANOS”

“Aprendi a ler quando ia fazer cinco anos de idade, no mês de abril. E a minha mãe me colocou no jardim de infância. Eu digo isso porque meu sobrinho me pergunta: ‘Mas você já foi novinha, tia? Isso parece fake news’ (risos). Em casa, você vê que a vaidade na minha família não é uma coisa que pega. Todo mundo fala o que quer. Ninguém precisa de terapia.”

CHATA COM O PORTUGUÊS

“Eu sou muito chata com meus assessores. Eu crio muito caso por conta de português. Eu sei que, em geral, não se sabe mais empregar pronome relativo e eu resolvi fazer um concurso. Quem me
Entregasse um relatório com poucos pronomes “que” eu daria um prêmio. Porque poderiam usar “cujo” ou “o qual” no lugar. Aí quando veio um relatório, alguém escreveu “cujo qual “ e eu disse: ‘Podem voltar com o ‘que’. Imaginem o volume de processos, cuidar de um gabinete no STF, de um gabinete no TSE – e ainda respondendo pelo
Gabinete do ministro Ricardo Lewandowisk, que saiu … eu não vou dar conta de brigar por causa de pronome relativo. “

COMO SUPERAR OS DISCURSOS DE ÓDIO

“A língua e a palavra para mim tem uma importância fundamental. Até porque sou da geração da “palavra de honra “ . A palavra significa o princípio e o fim das relações humanas. Nós vivemos com o outro e convivemos pela palavra. Essa tristeza toda dos discursos de ódio que hoje a gente vê, para nossa enorme amargura, apenas será superado quando nós nos reinventarmos como povo. Como diria e queria o meu conterrâneo Darcy Ribeiro, isso vai acontecer quando nos tornarmos um povo novo, uma matriz de uma nova civilização que consegue dialogar com todas as humanidades, resolvendo todo o seu passado e tendo a perspectiva de futuro. Nós somos plenamente capazes de realizar.”

“PODEMOS SER UM POVO QUE SIRVA DE EXEMPLO PARA UM POUCO MAIS DE PAZ”

“Quem produz a literatura que produzimos, quem produz a música que produzimos, quem produz a dança que produzimos, quem tem
um Portinari para mostrar para o mundo, pode ser matriz da melhor humanidade, na experiência democrática dos espaços públicos. Podemos ser um povo que sirva de exemplo para um pouco mais de paz. “

“TODO DIA TENHO QUE PROVAR PARA UM GRUPO DE HOMENS QUE SOU DA MESMA HUMANIDADE QUE ELES”

“Vivemos uma sociedade patriarcal, misógina, machista, preconceituosa. Para nós, mulheres, é muito cansativo. Todo dia eu tenho que provar para um grupo de homens que, não é que eu sou parecida humanamente com eles, mas que eu sou da mesma humanidade que eles. Temos que provar que a igualdade não tem cor da pele, que a dignidade tem a essência da alma. E essa essência da alma de um povo só a democracia pode fazer e só a democracia na sociedade pode permitir construir.”

PÁTRIA AMADA E PATRIAZINHA, COMO VINíCIUS DE MORAES

“Espero que vocês, jovens, continuem a sonhar o sonho de Amor Brasil. Eu quero, à maneira de Vinícius de Moraes, que a gente não precise dizer teu nome Pátria
Amada. Eu quero que a gente possa democraticamente cuidar do Brasil. Quero, à maneira de Vinícius, que a gente que te chame Patriazinha, como filha que és, uma ilha de ternura, Ilha Brasil. Eu espero muito que a gente consiga cuidar do Brasil não como pátria mãe, mas como a pátria filha. Porque a gente queria que ela tivesse tido gentileza e ela não teve. Por ter sido exatamente fruto de um patriarcado, de desumanidades e que ainda encontra ecos porque nós não teríamos vivido tudo o que vivemos nos últimos tempos . E a democracia é como as liberdades: precisa ser cultivada todos os dias.“

“A VIDA É DURA, É BOA E É CURTA. O QUE NÃO ESTIVER BOM CUIDE DE MUDAR “

“Escutei aqui na Fliaraxá que o Brasil é difícil. Tudo é. A vida é difícil. Uma vez , quando estava na presidência do Supremo Tribunal Federal, cheguei em casa me queixando com papai que estava tudo muito difícil. Ele tinha então 98 anos , e logo depois ele se foi. E ele me disse : ‘Olha aqui, a vida é dura, é boa e é curta. Portanto, o que não estiver bom cuide de mudar. Para você e para os outros.’ Eu nunca tive dúvida que a vida é dura. Aliás, se fosse fácil, eu nem estaria aqui porque nunca tive muita facilidade. Mas é ótimo viver. E a aventura de viver é uma oportunidade e sorte que todos temos. Eu ainda fico com a minha esperança de Brasil .”