É injusto afirmar que a prerrogativa do degredo cabe à esquerda. Expurgos, exílios, gulags, paredón, ostracismos e coisas do tipo já aparecem no Gênesis, com Adão e Eva. Os regimes ditatoriais de direita não só condenavam ao exílio como torturavam e matavam sem mais aquela. Mas talvez por conta de certo purismo ideológico e pelo fato de no Brasil da redemocratização os partidos de centro e centro-direita serem verdadeiras geleias fisiológicas sem qualquer compromisso com o país, os rachas na esquerda sempre deram muito mais ibope. O mais recente, que culminou com o anúncio de Ciro Gomes de “suspender” sua candidatura presidencial pelo PDT à espera de um reposicionamento da bancada de deputados federais do partido, não será, certamente, o último. O movimento de Ciro não foi muito bem entendido pelos “exegetas” da política nacional, pois deputados do PDT do Ceará, próximos demais não só de Ciro como de toda a família Gomes, votaram com o governo Bolsonaro na PEC do Calote, e isso jamais aconteceria sem o beneplácito do clã.
(Crédito: WikiCommons)
A adesão de 60% dos deputados do PDT à agenda do Executivo e de seu lugar-tenente, o presidente da Câmara, Arthur Lira (ou pelo contrário, a agenda de Arthur Lira, e de seu lugar-tenente, o presidente da República) na votação da PEC do Calote deixou Ciro sem a possibilidade de fazer o que mais gosta: vituperar. Foi assim em 2019, nas, digamos, primeiras luzes do governo Bolsonaro. A votação da reforma da Previdência, encaminhada muito mais pelo então presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, do que por Bolsonaro, que só se mexeu para garantir que os militares não perdessem nada de seu regime previdenciário privilegiado, causou o primeiro cisma no PDT, quando a deputada novata Tabata Amaral (SP) apoiou o projeto contra a determinação partidária, junto com outros colegas de partido. Chamada de “tesouro” por Ciro antes desse episódio, Tabata passou por verdadeiro processo de “reeducação”. Além de ter seu mandato suspenso, Tabata foi vítima de petardos de Ciro que ela chamaria depois de “machistas”. Mais à frente, com o nome de Ciro definido como candidato presidencial do PDT, o espaço foi se fechando para a deputada, que acabou migrando para o PSB.
(Crédito: Luis Macedo/Agência Câmara)
Assim como o mineiro só é solidário no câncer, na construção famosa que Nelson Rodrigues atribuiu a seu amigo Otto Lara Resende, a esquerda só se une diante da truculência da extrema-direita mais burra e bestial. Bem, nem sempre, como se vê na dificuldade quase intransponível de seus principais atores chegarem a um nome de consenso para a corrida presidencial de 2022. De qualquer forma, é natural que haja resistências a Lula e ao PT, o pólo dominante do campo progressista dos últimos 30 anos. Dissidências e expulsões não foram poucas ao longo da história de quatro décadas do partido. O quadro é coerente com o próprio fazer político, que exige composições com grupos com agendas muitas vezes divergentes – no Brasil, esse grupo atende pelo nome de Centrão. Nos 14 anos dos governos Lula e Dilma, o PT precisou se aliar com partidos em cujo DNA habita o fisiologismo, MDB, PP e quejandos. Mas foi novamente uma reforma da Previdência, a de 2004, em Lula 1, veja só, que fez surgir o Psol. A ex-senadora Heloísa Helena (AL) e os ex-deputados federais Babá (PA), João Fontes (SE) e Luciana Genro (RS) não votaram com o PT na reforma, por verem no projeto contradição com as posições históricas da sigla. A história, como se viu, repetir-se-ia em 2019, mas não se sabe se exatamente como farsa.
(Crédito: Arquivo Luciana Genro)
Imaginar que o PSDB algum dia tivesse uma agenda verdadeiramente social-democrata, à europeia, parece hoje um delírio, algo digno do campo do maravilhoso, ou do campo do mito – ops, a palavra já não serve. Mas foi para se separar do PMDB, o grande partido de oposição durante o regime militar e nos primeiros anos da redemocratização, que Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Mário Covas, José Richa e mais alguns outros decidiram buscar espaço mais, digamos, à esquerda. O PSDB, como lembraria o ex-governador paulista já morto Franco Montoro, nasceu com a seguinte divisa: “não queremos a exploração do homem pelo homem. Nem a opressão do homem pelo Estado”. No manifesto de fundação do partido, em 1988, os signatários se dizem “chocados com o espetáculo do fisiologismo político e da corrupção impune” entre outras perplexidades, e afirmam fé em coisas como “apoiar as justas reivindicações dos trabalhadores, assegurada a livre negociação com sindicatos autônomos e os meios próprios de luta dos assalariados, inclusive a greve, sem interferência do Estado“. Cabe hoje a velha exclamação de Paulo Francis: waal
(Crédito: Reprodução/PSDB)