Mesmo com a utilização cada vez mais frequente do Twitter como ferramenta de comunicação de atos do Executivo e do Legislativo, cartas ainda conseguem fazer algum barulho na cena política brasileira. Além disso, tendem a se perenizar: é difícil imaginar como um tuíte, ou um conjunto deles, será estudado por historiadores daqui a 20 ou 30 anos. Já com as velhas cartas, são outros 500. Na história brasileira, algumas delas tiveram efeitos bombásticos. Em dezembro de 2015, Michel Temer anunciou seu desembarque oficioso do governo Dilma e endossou a aceitação do processo do impeachment pelo companheiro de partido e então presidente da Câmara, Eduardo Cunha. “Verba volant, scripta manent” (As palavras voam, a escrita permanece), o então vice-presidente começava, talvez para oferecer menos a Dilma do que à opinião pública uma imagem calorosa d’antanho, uma cena digna do século 19, com o autor tendo de retirar o pince-nez do rosto e de quando em quando molhar a pena. “Desde logo lhe digo que não é preciso alardear publicamente a necessidade da minha lealdade. Tenho-a revelado ao longo destes cinco anos”, anunciou, para depois explicitar seu incômodo por se sentir escanteado do fazer político cotidiano. “Sou presidente do PMDB e a senhora resolveu ignorar-me chamando o líder Picciani e seu pai para fazer um acordo sem nenhuma comunicação ao seu vice e presidente do partido (…) Recordo, ainda, que a senhora, na posse, manteve reunião de duas horas com o vice-presidente Joe Biden – com quem construí boa amizade – sem convidar-me, o que gerou em seus assessores a pergunta: o que é que houve que numa reunião com o vice-presidente dos Estados Unidos, o do Brasil não se faz presente?” Ao final, bem mais seco do que seu estilo gongórico habitual sugeriria, diz: “Finalmente, sei que a senhora não tem confiança em mim e no PMDB, hoje, e não terá amanhã. Lamento, mas esta é a minha convicção.” (Créditos: WikiCommons)
Acuado pelo cerco que o ligava ao atentado contra o jornalista Carlos Lacerda e enfraquecido politicamente, Getúlio Vargas deu sua última “cartada” em 24 de agosto de 1954. A cartada foi o próprio suicídio, ou, como escreveu, ter “oferecido sua vida em holocausto”, o que mudou completamente o tabuleiro de forças políticas e o fez “sair da vida para entrar na história”. A carta-testamento, como o documento, talvez o mais famoso de todos da história republicana brasileira, ficou conhecido, foi dada ao conhecimento público logo após o suicídio do ex-presidente, com um tiro no coração, às 8h30, no palácio do Catete, no Rio. O texto não é 100% Getúlio: ele havia passado um esboço para o jornalista e amigo pessoal José Soares Maciel Filho, que o datilografou – arte que Getúlio desconhecia – e deu a redação final. Getúlio passa em revista suas realizações, como a revisão do salário mínimo e a fundação da Petrobras, e se coloca em sistemática oposição a “grupos internacionais”, “empresas cujos lucros alcançavam até 500% ao ano” e “grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho”. Se hoje se critica tanto o “nós contra eles” comuníssimo na retórica de nossos líderes populistas contemporâneos, que tal esta passagem do documento: “Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo e de ninguém”? Seja como for, nenhum velório havia reunido tamanha comoção popular, com cerca de 100 mil pessoas indo dar seu último adeus ao líder trabalhista.
(Créditos: museu da republica)
Primeiro intelectual com longa vivência universitária e diversos títulos acadêmicos a ocupar o Planalto, Fernando Henrique Cardoso, o príncipe-sociólogo, dedicou-se a fazer uma espécie de diário, gravando áudios, ao longo de seus oito anos de presidência, entre 1995 e 2002. Os registros acabaram se tornando os quatro tomos dos “Diários da Presidência”, obra editada pela Companhia das Letras. Não é razoável esperar grande apuro estético desses hoje escritos, que servem, contudo, como muito interessante registro histórico com uma perspectiva pouco usual: a da microfísica, a do dia a dia comezinho do poder. Em 27 de março de 1996, com 15 meses no cargo, FHC já parecia um pouco entediado. “Estou ficando cansado de tudo isso e desejoso de que esses anos passem logo. Vejo que esse Congresso vai se arrastando e não quero ser eu que tenha que dizer à Nação que “assim não dá!” (…) É preciso haver uma transformação profunda das instituições políticas e, quem sabe, voltar mesmo à ideia do parlamentarismo, com presidente forte, a la francesa, mas com primeiro-ministro, para, quem sabe, tornar essa Câmara mais responsável”. Detalhe: o projeto de emenda constitucional da reeleição já voltava à pauta e uma reforma administrativa, tida por todos como urgente e necessária, era jogada para as calendas pelos parlamentares. (Créditos: WikiCommons)
Comícios não vencem eleições há algum tempo, mas ainda surgem aqui e ali líderes com espantosa capacidade de falar às massas, seja pela habilidade ao improvisar, seja pelo magnetismo que conseguem emprestar às palavras, seja pelo uso super expressivo do olhar e das pausas. O norte-americano Barack Obama e o brasileiro Lula são exemplos óbvios, mesmo que seus discursos possam ter hoje menos poder de transformação do que uma corrente de memes e notícias falsas nos grupos de zap da família. O discurso de despedida de Lula em São Bernardo do Campo, em abril de 2018, às vésperas de se entregar à Polícia Federal para cumprir pena em Curitiba, é dessa estirpe. Inspirado como um velho menestrel (ou como um cavalo de umbanda), disse a horas tantas: “Não adianta tentar acabar com as minhas ideias, elas já estão pairando no ar e não tem como prendê-las. Não adianta parar o meu sonho, porque quando eu parar de sonhar, eu sonharei pela cabeça de vocês e pelos sonhos de vocês (…) Não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque eu não sou um ser humano, sou uma ideia, uma ideia misturada com a ideia de vocês.” (Créditos: Paulo Pinto/Fotos Públicas)