O discurso um dia canônico da economia ocidental – tomada como verdade máxima no Brasil – de que injeção de dinheiro na economia pelo Estado gera inflação e, portanto, deve ser evitado a qualquer custo, em nome de medidas de austeridade fiscal – o tal “austericídio” – sofreu abalos importantes na crise do subprime de 2008, quando o Fed, o banco central norte-americano, fez exatamente isso, imprimindo papel-moeda e garantindo liquidez para os atores financeiros. Com a pandemia da Covid-19 e a debacle mundial econômica de 2020, injetar dinheiro e garantir a sobrevivência da população passou a ser um imperativo, e o discurso de que isso poderia comprometer as contas públicas em nível “hard” só foi mencionado por gestores anacrônicos – como Paulo Guedes. O economista André Lara Resende, um dos pais do Plano Real, voltou a ser uma voz importante desse debate em 2020, ao lançar o livro Consenso e Contrassenso – por uma economia não dogmática. Resende é crítico, por exemplo, da PEC do Teto de Gastos, tão celebrada em 2017, quando foi aprovada pela gestão Michel Temer/Henrique Meirelles. Em artigo para o jornal Valor Econômico, ele diz que “a reação coordenada das políticas monetárias e fiscais à pandemia durante 2020 voltou a elevar a relação dívida/PIB em todo o mundo. Apesar dos altos níveis de endividamento público e da abundância de crédito monetário, não há sinais da volta da inflação, nem de que as economias avançadas estejam à beira de uma crise fiscal”. Resende é ainda mais enfático em seguida: “Está claro que não existe um limite fatídico para a relação dívida/PIB, a partir do qual se abriria um “abismo fiscal”, na expressão preferida dos analistas brasileiros, e o país entraria em colapso.”
(Foto: Bel Pedrosa/Divulgação)
Ex-presidente do Banco Central de 1999 a 2002, no segundo termo do governo FHC, o economista Armínio Fraga, sócio-fundador da Gávea Investimentos, disse recentemente que jamais apoiou a tese do Estado mínimo. É difícil concordar, especialmente por ter sua imagem colada a um momento reformista de FHC. De qualquer forma, “o” tema de Armínio neste momento é a desigualdade. “O Brasil segue imensamente desigual, não apenas sob a ótica da renda, mas também pela reduzida mobilidade social. Temos um longo caminho a percorrer para chegar perto de qualquer noção decente de igualdade de oportunidades. Temos que reduzir a informalidade (e precariedade) do trabalho e repensar a rede de proteção social”, escreveu em coluna recente na Folha de S.Paulo. No mesmo texto, Fraga fez um diagnóstico pontual do problema brasileiro, que torna a tentativa de criar um estado de bem-estar social por aqui algo próximo de uma quimera. “No Brasil os juros de longo prazo seguem altíssimos e, portanto, não há espaço para aventuras. Ao contrário, os níveis de déficit e dívida pública não são sustentáveis e precisam ser revertidos de forma estrutural”. Armínio sustenta que, a par de um crescimento do gasto público em 10% do PIB “nas últimas décadas”, o investimento público caiu de 5% para cerca de 1% do PIB – o investimento está contido no gasto público. “Não surpreende que gastos com saúde, infraestrutura, proteção social e ciência estejam comprimidos, o que inviabiliza os objetivos de longo prazo do país. Temos que encarar o fato de que o tamanho do ajuste nas prioridades do gasto público é bem maior do que o ajuste fiscal necessário para a estabilidade macro, e se soma a ele.”
(Foto: Bel Pedrosa/World Economic Forum)
Quando Jair Bolsonaro ganhou as eleições, em 2018, a economista Monica de Bolle, pesquisadora-sênior do eminente Peterson Institute for International Economics, cujo objetivo expresso é “fortalecer a prosperidade” e o “bem-estar humano”, escreveu um artigo dizendo que nem ele nem seu rival, Fernando Haddad (PT), tinham “a menor noção do que fazer com as exigências econômicas do país”. Versada em macroeconomia e forjada na Casa das Garças, think tank de corte liberal prestigiosa do Rio, ela viu, três anos atrás, “boas intenções” em Paulo Guedes, apesar do discurso ultraliberal e “pouco realista, preso aos anos 70”. Com a pandemia, veio o twist, e Monica mandou às favas o Estado mínimo – e as boas intenções do ex-posto Ipiranga. Dos Estados Unidos, onde vive, mas participando muito do debate brasileiro, especialmente em 2020, no começo da pandemia, foi enfática em entrevista ao jornal El País. “Hoje, dane-se o Estado mínimo, você precisa gastar. É preciso é errar pelo lado do excesso não para o lado da cautela numa crise desse tipo.”
Ao Estado brasileiro tem muito espaço para aumentar a sua produtividade. Indício disso é que quase 80% do gasto público vai para a folha de pagamento e para a Previdência, porcentagem bem superior à de países comparáveis ao Brasil.
(Foto: Inter-American Dialogue)
A economista Laura Carvalho, autora do best seller econômico Valsa Brasileira, não precisou que uma pandemia mundial aparecesse para mudar seus conceitos em relação à presença do Estado na economia. Ela sempre defendeu um Estado indutor e uma política tributária que traga alguma justiça social e financeira, muito diferentemente do que se vê por aqui. Em entrevista à PODER em outubro de 2020, ela defendeu um programa de expansão de renda básica. “O discurso de que o Estado só drena recursos é algo que a gente devia superar (…) As classes mais altas saíram do serviço público, não o usam e consideram desperdício. É o princípio da barbárie.” Para ela, a discussão sobre as tão propaladas reformas perderam seu foco. “Deixaram de ser discutidas por seus objetivos, que foram atropelados. Reforma tributária serve para deixar o sistema menos distorsivo, mais simples, justo e progressivo. A administrativa é sobre eficiência, justiça também. O único objetivo passou a ser saber quantos trilhões de economia podem gerar.” (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)