Para as gerações mais jovens, a censura pode ser apenas uma curiosa nota histórica, quase anedótica, de que ouviram falar vagamente. Dar a burocratas o poder de decidir o que jornais, cinemas, TVs, discos etc. poderiam ou não publicar, veicular, exibir e tocar é uma tarefa que os governos totalitários se arvoram desde sempre. Por isso é difícil escolher este ou aquele caso entre tantos. Um, de qualquer forma, é emblemático. O governo militar, no primeiro ano da presidência de Ernesto Geisel, tentou esconder uma… epidemia. O surto de meningite, que começou em Santo Amaro, em São Paulo, e matou 731 pessoas em apenas três meses em 1974, não deveria, para os militares, ser de amplo conhecimento. Com o decreto-lei que estabelecia a censura prévia em vigor desde 1970, médicos e sanitaristas foram proibidos de sequer falar da existência da doença nas mídias eletrônicas. A taxa de mortalidade da meningite era muito alta, de 14%, e por isso não foi possível manter a farsa por muito tempo. O compositor Chico Buarque, ele mesmo um dos alvos preferenciais da censura entre os artistas brasileiros, chegou a criar um pseudônimo, Julinho da Adelaide, com a qual assinava algumas músicas para tentar escapar da censura – deu certo inclusive com a provocativa Jorge Maravilha (“Você não gosta de mim/ Mas sua filha gosta”). Numa entrevista histórica publicada pelo jornal Última Hora, Julinho/Chico falou que era “pragmático”, numa menção à maneira como Geisel se referia à própria política externa. A personagem explicou então aos entrevistadores, o jornalista e escritor Mario Prata e Melchíades Cunha Jr., seu “samba-duplex”. “São sambas que você pode mudar”. E exemplificou: “Eu fui para São Paulo com a Judith e só saí de lá com a meningite”. “Se der problema, eu mudo: ‘Eu fui para São Paulo com a meningite e só saí de lá com a Judith’. Fica, inclusive, como se São Paulo tivesse curado a minha meningite.” (Créditos: Reprodução)
É tentador fazer uma compilação cômica – e até simpática – das decisões da censura, como a atribuir um certo valor “familiar” a quem efetua os cortes. Assim, dar vida concreta a Solange Hernandez, a dona Solange, a policial que comandou a divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal no começo dos anos 1980 e que emprestava sua assinatura a um documento que era exibido antes dos filmes no cinema e dos programas na TV, pode acabar por gerar empatia com o censor. Mas as interferências que parecem hoje meramente anedóticas tiveram efeitos práticos, com enormes perdas de ordem econômica e moral. Em 1982, a banda Blitz, por exemplo, que estourou nas FMs com a babinha pop Você não soube me amar, viu-se na undécima hora de lançamento de seu disco com duas músicas censuradas, uma delas por conter a expressão “bundando” [vadiando]; e a outra por fazer trocadilhos com a palavra “peru”. Evandro Mesquita, ex-líder da Blitz, diria depois em entrevista à MTV que teve a ideia de riscar a matriz do disco para traduzir a “agressão” sofrida. E como os primeiros lotes do LP – os velhos discos de vinil – continham as faixas, os membros da banda decidiram riscar manualmente 30 mil cópias, deixando muito claro, inclusive visualmente, a “vandalização” que a Blitz se autoinflingia. Seis anos antes, em outra intervenção extravagante, a TV Globo foi proibida de exibir uma montagem do balé russo Bolshoi para Romeu e Julieta, a tragédia de Shakespeare que a BBC inglesa transmitiria para outros 111 países. O venerando Bolshoi, fundado no século 18, era, em tempos de Guerra Fria, um dos orgulhos soviéticos, e enaltecê-lo soou acintoso a Brasília. O então senador Paulo Brossard disse que a decisão governamental fez “num só dia” mais mal do que “12 anos [a idade de então do Golpe Militar] de manifestações externas em desfavor dos governos do Brasil”. (Créditos: Reprodução/FB/Ballet Bolshoi)
A censura age para silenciar quem revela o que os governos não querem ver revelado, mas essa não é a única maneira de os regimes afirmarem suas verdades. Contar com o beneplácito dos sistemas de comunicação, privados ou não, é imperioso, e algo na linha “um manda e o outro obedece”, a infame frase do ex-ministro Eduardo Pazuello pode ser ouvida ainda hoje. Silvio Santos criou uma variação do tema ao receber o presidente em sua casa, em São Paulo, em dezembro de 2020, em razão da edição de um selo oficial que celebrou os 90 anos do Homem-Sorriso. Disse o empresário: “A minha concessão de televisão pertence ao governo federal e eu jamais me colocaria contra qualquer decisão do meu ‘patrão’, que é o dono da minha concessão. Nunca acreditei que um empregado ficasse contra o dono, ou ele aceita a opinião do chefe, ou então arranja outro emprego”. Não dá para chamar o empresário de incoerente. João Figueiredo, o último presidente do ciclo militar, outorgou a Sílvio a concessão do SBT e recebeu em troca o boletim A Semana do Presidente, em que os atos do chefe da nação eram divulgados num clima digno do Pra Frente, Brasil. Concessões de rádio e TV foram instrumentos estratégicos de perpetuação de poder no Brasil, daí que muitos parlamentares que se mantêm proeminentes em seus estados acumulam grupos inteiros de comunicação, como a Família Sarney, dona do Grupo Mirante, do Maranhão. No primeiro tomo de seu Diários da Presidência, Fernando Henrique Cardoso medita a respeito da escolha de seu ministro das Comunicações: “O pessoal da Globo especificamente disse o seguinte: ‘Olha, o ministro é seu, quem disser que fala por nós está mentindo (…)’. Mesmo assim, se eu nomeasse alguém que não fosse muito próximo a mim, esse alguém ia ser logo acoimado [acusado] de ter sido feito pelo Roberto Marinho.” (Créditos: SBTpedia)