Por Paulo Vieira
Fotos Adrian Ikematsu
Num setor dominado por empresas transnacionais gigantescas como a alemã Basf, dona da Suvinil; a holandesa Akzo, da Coral; as americanas PPG, das Tintas Renner; e a Sherwin-Williams, fazer e comercializar tintas com sucesso no Brasil pode ser questão de fé, teimosia ou as duas coisas juntas. Só a Sherwin-Williams fatura globalmente US$ 20 bi. Fé e teimosia, sim, mas dá para dizer que legado também entra na equação. Maria Cristina Potomati, da Dovac, fabricante das tintas Lukscolor, indústria criada por seu pai, Domingos, em 1949, está à frente do negócio desde 1979, quando o fundador morreu, aos 53 anos. No começo dos anos 2000, sua irmã Angelica, advogada formada pela USP, juntou-se a ela, assumindo a direção de marketing.
Maria Cristina, economista graduada pela FMU, chegou à empresa jovem, aos 20, e talvez por isso tenha o pai como guru e maior professor – especialmente para valores e princípios, como disse a PODER na sede fabril e administrativa da companhia, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. As máximas que Domingos falava vão aparecendo sem esforço em seu discurso. “Quem tem de ser rica é a empresa, quando ela está forte, você está forte”; “respeito não se herda, se conquista”; “patrimônio não se confunde com prestígio”; “há dois vícios que se pega na adolescência: trabalhar e fumar”. Domingos, filho de imigrantes italianos era, claro, fumante, e logo cedo aprendeu o ofício da pintura de carros – então, todos importados. Ele iniciou sua saga industrial no Ipiranga, em São Paulo, primeiro com uma loja, e depois com uma pequena fábrica de garagem, a Oxford. Segundo Maria Cristina, o pai tinha um talento especial para a mistura de cores, gênese da marca Luxforde, que se tornaria a principal do setor de repintura automotiva (para carros usados) do Brasil. A marca seria vendida em 1968 para a multinacional alemã Hoechst, levando Domingos, agora bastante capitalizado, a abrir frente em outro setor, o de thinners, com a Luksnova.
O mundo, o Brasil e a administração de empresas mudaram significativamente nas últimas quatro décadas, e não seria muito provável que Maria Cristina conseguisse manter um negócio industrial forjado em sua casa vivo e relevante apenas dando curso a um storytelling nostálgico. Seu setor exige capital intensivo e constantes aportes em pesquisa e desenvolvimento, algo que, se é questão de vida e morte para as empresas brasileiras, não é exatamente “issue” para a concorrência transnacional. Mas, a julgar pelo tom sereno com que ela relata a história de seus últimos 40 e poucos anos à frente dos negócios da família, não houve lances épicos nem noites seguidas de sonhos intranquilos. E seguramente não foi moleza, já que, além do tamanho – e do assédio – da concorrência, coube a ela mudar completamente a rota da companhia, ao lançar a marca Lukscolor em 1989 e adentrar pelo sendero das chamadas tintas imobiliárias, aquelas destinadas ao público consumidor que reforma, renova ou apenas dá um tapa em seu imóvel. É essa vertente que responde por 83% do faturamento bilionário do segmento de tintas, muito à frente do produto automotivo, que contribui hoje com 6%.
A verdade é que, mesmo que não houvesse grandes desafios industriais a superar com a mudança de portfólio, as batalhas enfrentadas na jornada comporiam uma narrativa muito mais digna de uma Ilíada, digamos, do que dos Marimbondos de Fogo. É difícil quantificar o que mais custou a Maria Cristina – e não só do ponto de vista financeiro: se o reposicionamento da grande estrela da companhia, agora a tinta imobiliária; se os esforços pela manutenção da rede de vendas – as lojas multimarcas de terceiros; se a gestão de pessoas; ou a necessidade de injeção de capital, entre muitas outras tantas lutas, tudo isso temperado por uma conjuntura inóspita, com sucessão de planos econômicos, mudanças de moeda, confisco, inflação de quatro dígitos e o famoso manicômio tributário, “default” do ambiente de negócios brasileiro, a vergar sobre as costas da empresária.
SENHORA DO DESTINO
Mesmo com tantos desafios, a companhia também tem marcada em sua história momentos de pioneirismo e sacadas de marketing em grande estilo. Em 2001, por exemplo, houve o lançamento da tinta com “suave perfume”, algo inédito no mundo segundo as irmãs Potomati, tinta que eliminaria um incômodo histórico da aplicação desse produto, o cheiro forte. “Gosto de pensar como o consumidor, e ele demorava sempre mais para pintar a casa por causa do cheiro”, explica Angelica, responsável pela inovação.
A novidade, que seria adotada pela concorrência, mudaria um padrão de comportamento do consumidor, abreviando o intervalo entre as pinturas de seus imóveis, segundo a caçula das Potomati. Três anos depois, a Lukscolor estrelou um dos mais cobiçados merchandisings do país, exibindo sua marca para literalmente meio Brasil na loja de material de construção de Maria do Carmo, a protagonista interpretada por Susana Vieira da novela global Senhora do Destino, de Aguinaldo Silva. Mais recentemente, a organização empreendeu a troca de substâncias derivadas de petróleo em certa linha de produtos de preparação e acabamento, em movimento que precedeu a onda ESG que chegou ao setor.
DIVERSIDADE
Caso pensasse em sucessão, seria natural esperar de um industrial, no fim dos anos 1970 no Brasil, que privilegiasse eventuais genros às próprias filhas mulheres. Ou até mesmo que vendesse sua companhia. Não foi, como se viu, o caso aqui, num gesto, quem sabe, de inclusão avant la lettre de Domingos. Hoje, o tema da diversidade parece estar bem resolvido para as irmãs. “Temos a preocupação de não ter preocupação com isso”, diz Angelica, para deixar claro que as minorias estão bem estabelecidas em postos gerenciais e diretivos na Dovac – no caso, ela está falando das mulheres que trabalham na empresa. “Temos uma diretora à frente do supply chain, outras tantas em recursos humanos e gerentes em outros setores”, completa.
De qualquer forma, a transição desde a morte do pai não foi suave, exigindo atuação decisiva de Wilma, a mãe das executivas, que fez valer os 70% de participação da família na companhia ao colocar no comando a primogênita. Os sócios minoritários, contrariados, tiveram suas cotas compradas aos poucos e por fim deixaram a Dovac. Maria Cristina diz que não enfrentou hostilidade naquelas primeiras semanas, mas que foi necessário agir. “Numa empresa, quando todos remam na mesma direção já não é fácil, imagina quando ainda há dentro dela pessoas não alinhadas”, conta.
PASSAGEM DE BASTÃO
Dos três herdeiros das irmãs Potomati, dois homens trabalham na companhia, e uma passagem de bastão é esperada para o futuro. Maria Cristina diz que profissionalizou bastante a gestão, que está a formar um conselho e que pretende em algum momento trocar o dia a dia pela estratégia. Vender não está em causa, mas ela refuta usar o advérbio nunca. Caso a terceira geração venha mesmo a assumir o comando, é fundamental, na visão de dois analistas ouvidos pela PODER, que ela entenda os pontos fortes e fracos, as ameaças e oportunidades, numa análise SWOT a quente, vivenciando o dia a dia da empresa, se possível no – aqui literal – chão de fábrica. “A velha carteirada não funciona, é preciso mostrar que está lá por competência e mérito”, diz Marcelo Apovian, consultor de processos de transição em empresas familiares que agora fundou a fintech CredSeller. O planejador patrimonial Rodrigo Bussab, que concorda inteiramente com essa ideia, vê no Brasil um movimento de afastamento das novas gerações das velhas empresas familiares, especialmente as do setor industrial. “As terceiras e quartas gerações que chegam agora ao comando das fábricas que seus avós fundaram acham aquilo tudo antiquado. Mesmo quando lucrativas, preferem abrir uma fintech. Essas empresas estão morrendo por falta de gente com interesse em comandá-las.”
“As terceiras e quartas gerações que chegam ao comando das fábricas que seus avós fundaram acham tudo antiquado. Essas empresas estão morrendo por falta de gente para comandá-las” Rodrigo Bussab, planejador patrimonial
Venha quem vier no futuro assumir o timão da Dovac, talvez seja útil de vez em quando medir a temperatura do ambiente interno. Numa empresa que depende decisivamente dos pontos físicos de venda – as tais lojas terceirizadas multimarcas, caraterística do varejo de materiais de construção –, o cuidado com a atuação das equipes de vendas é crítico. Alguns vendedores, de hoje e ontem, se manifestaram no site Glassdoor, que recebe avaliações anônimas do ambiente de trabalho de diversas empresas. Há ali elogios à política de remuneração da Dovac, mas críticas à certa centralização das decisões e à burocracia de processos. As irmãs Potomati têm claro que seu negócio se nutre e se apoia fortemente nas visitas de seus vendedores aos lojistas, algo que foi interrompido por motivos óbvios durante a pandemia, e que essas visitas devem e precisam ser intensificadas. Da pandemia, aliás, ficou a boa lição, de resto aprendida por tantos gestores, de que reuniões produtivas prescindem de encontros presenciais. Ficou também um saldo comercial muito positivo, tanto em 2020 como em 2021, com os consumidores comprando mais tintas para dar um trato em suas casas e apartamentos, subitamente transformados também em escritórios. O setor todo lucrou com isso, conforme dados da Associação Brasileira dos Fabricantes de Tintas.
O sol nasceu pra todos, dizia o refrão pegajoso de um jingle de uma das campanhas políticas do ex-governador paulista Orestes Quércia, e a Dovac, com suas várias décadas de vida, tenta usufruir de seu quinhão de luz e calor em meio a uma concorrência que, como se diz no esporte, joga muitas vezes com força desproporcional. Não deixa de causar certo espanto – e admiração – que a fabricante das tintas Lukscolor e tantas outras companhias familiares iniciadas um tanto romanticamente lá atrás, e mantidas até aqui com capital 100% nacional, não apenas sobrevivam, como sejam tão numerosas no Brasil. Caso essas últimas precisem dar um tapa no visual, renovar a pintura de suas paredes, muros e demais instalações para mostrar que estão pujantes e “alive and kicking”, já sabem agora com quem falar.
CARREGANDO NAS TINTAS
O setor das tintas foi um dos que mais lucraram durante a pan – demia. Em 2021, as empresas estabelecidas no Brasil produziram 5,7% a mais em volume em relação a 2020, um ano também positivo. Para 2022, Luiz Cornacchioni, presidente da Associação Brasileira dos Fabr icantes de Tintas (Abrafati), espera um cresci – mento em volume de 2,5% – a entidade não divulga o faturamen – to total do segmento. Há cerca de uma década o Brasil se tornou o quinto maior produtor mundial, e consome praticamente tudo o que produz, uma vez que grande parte da composição da tinta é água, o que geraria peso e encargos excessivos em ca – so de exportação. O produto também “viaja mal”, podendo ter sua qualidade comprometida com as vicissitudes do transporte. Comentando o setor em entrevista a PODER, o executivo dis – se que as empresas 100% nacionais têm “mercado amplo para atuar” mesmo diante da competição feroz com as transnacio – nais. Segundo ele, uma característica do segmento é sua boa dis – tribuição nacional, o que acaba por gera r empregos em todas as regiões. Cornachioni acredita que o interesse maior do consumi – dor brasileiro pela beleza do próprio imóvel, costume adquirido na pandemia, tende a se perpetuar. O setor prepara para novem – bro a divulgação de um programa de sustentabilidade setorial que vem sendo feito com apoio do Instituto Akatu. Cornacchioni não soube adiantar a meta de redução da emissão de carbono aí contid a, um dos parâmetros mais importantes hoje para as di – versas cadeias industriais.