PÁGINAS ABERTAS

Um dos grandes intelectuais brasileiros e, no passado, um importante editor de livros, Pedro Paulo de Sena Madureira diz que teve sua biografia e sua vida sequestradas e garante que jamais publicará suas memórias

Pedro Paulo de Sena Madureira || Crédito: Paulo Freitas

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES
FOTOS PAULO FREITAS

“Sou uma bola que foi para escanteio e ninguém veio cobrar”, afirma o professor Pedro Paulo de Sena Madureira, de 75 anos, às voltas com a preparação das aulas que dará ao longo da semana, por Zoom, em torno de escritores como Jane Austen, Oscar Wilde, James Joyce, João Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e inúmeros outros. De vários deles, foi editor, amigo ou ambos: Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Antônio Houaiss, Milan Kundera, Adélia Prado, Marguerite Yourcenar, Roland Barthes.

Editor de livros, ele não os edita desde 2005. Autor eventual, publicou as coletâneas de poemas Devastação (1976) e Rumor de Facas (1989), que devem ser republicados ao lado de um terceiro volume, inédito, batizado de Tenho Medo. Garante que jamais publicará suas memórias, embora as tenha em grande quantidade, extraídas do convívio com Gore Vidal, Octavio Paz, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, José Sarney, Danuza Leão e centenas de nomes da política e das várias áreas da cultura.

“Foi a única pessoa mais inteligente que conheci, junto com o professor Houaiss [o filólogo Antônio Houaiss]”, comenta, referindo-se ao que o crítico literário e cientista político conservador José Guilherme AlvesMerquior disse sobre ele. Segundo Pedro Paulo, autor muito inteligente estraga tudo. “Pode ser inteligente para dentro, mas não ficar pavoneando a inteligência, como estou fazendo aqui há quatro horas”, observa, em meio à entrevista que concedeu no apartamento de Higienópolis, em São Paulo, onde mora com o marido, o artista plástico carioca Carlos Henrique Lamothe Cotta, em uma união que dura 45 anos.

Festejado entre as décadas de 1970 e 2000 como editor em casas literárias como Imago, Nova Fronteira e Siciliano, Pedro Paulo despediu-se do mercado literário ao ser destituído da última empresa em que foi editor (e sócio), A Girafa. “Sequestraram minha biografia e minha vida”, define esses últimos 17 anos. A reviravolta aconteceu quando era vice-presidente da Fundação Bienal de São Paulo e homem de confiança do então presidente da instituição, Edemar Cid Ferreira, dono do Banco Santos, que viria a ser liquidado pelo Banco Central em 2005, por falência fraudulenta. Foi julgado e absolvido, mas isso não foi suficiente para que pudesse reocupar os postos perdidos na indústria editorial. “O meio editorial simplesmente não quis mais saber do Pedro Paulo. Isso já vinha do Rio, imagina eu, que venho de uma família de esquerda, trabalhar com Carlos Lacerda.”

“Não quero ser reabilitado como editor. Prefiro ficar como estou do que ser reabilitado por essa gente. Não é orgulho, não. Sou Sena Madureira

 

EM TERRAS PAULISTANAS

Carioca do Engenho Velho, ele se transferiu para São Paulo, em 1989, a fim de assumir um cargo no governo Orestes Quércia a convite do então secretário de Estado da Cultura, o escritor Fernando Morais. O editor relaciona parte do revés a essa troca de posição dentro do eixo Rio-São Paulo. “Resolvi ficar em São Paulo, aí não há editor que aguente. Viado [sic], bem-sucedido, nunca foi reprimido, trabalhou com os maiores nomes da República, imagina”, afirma, lançando mão do artifício de encerrar com um “imagina” cada uma de suas falas mais empolgadas ou indignadas.

Apegado às tradições, acalenta com orgulho a história passada da família Sena Madureira, integrada por comerciantes, políticos e um bisavô patriarca, militar na Guerra do Paraguai. O dinheiro (ou “dinheiroca”, como se refere) da família ainda existia, mas não era tão vultoso em 1947, quando veio ao mundo, na casa-grande de um antigo engenho de açúcar: “Nasci num momento em que o lema da família já era ‘estamos tão pobres quanto qualquer operário brasileiro, caímos da mais alta fortuna para esse proletariado e não fizemos escala na classe média’”. Herdou da avó paterna, Alice de Sena Madureira, certa aversão à classe média: “Quem sustenta golpes de extrema direita pelo mundo afora? Quem é o sustentáculo moralista dos golpes? A classe média”.

Embora avesso ao moralismo golpista, foi com um representante dessa casta, Carlos Lacerda, que ascendeu definitivamente como editor, levado pelo jornalista e político para orientar as publicações da Nova Fronteira, fundada em 1965. “O projeto, quando ele me chamou, era trazer toda a esquerda: Darcy Ribeiro, João Cabral de Melo Neto, Pedro Nava. Ele foi um homem de esquerda, comunista, ou paracomunista. Se muda para a direita depois de 1935, e vai ficando cada vez mais de direita. Imagina”, diz. Na Nova Fronteira, editou Virginia Woolf, Agatha Christie, Mario Vargas Llosa, Lya Luft (sua descoberta), T. S. Eliot, Marguerite Yourcenar, Jean Genet, Umberto Eco…

Antes, em 1969, havia integrado a ordem dos frades dominicanos, primeiro no Rio; e, em seguida, em Salvador. Católico até hoje, viveu um momento notável ao lado do cineasta Pier Paolo Pasolini e da soprano Maria Callas. No Brasil para lançar o filme Medeia (1969), os dois quiseram visitar o Mosteiro de São Bento de Salvador. “Quem foi o guia?

Pedro Paulo, 23 ou 24 anos. Fui mostrando tudo, falando em francês.” De volta ao Rio, trabalhou com o filólogo Antônio Houaiss na construção exclusivamente nacional da Enciclopédia Mirador Internacional. Sobre o perecimento das enciclopédias de papel pelos braços virtuais da Wikipédia, tem pouco a dizer: “Acho lamentável. Na maior edição da Encyclopedia Britannica, o redator de física era Albert Einstein. O de psicanálise, Sigmund Freud”.

O florescimento como editor e descobridor de autores começaria na editora Imago, do psicanalista Jayme Salomão. Foi onde lançou a poeta Marly de Oliveira, trazida a ele por Nélida Piñon, e Adélia Prado, recomendada por Carlos Drummond de Andrade. Esse, conhecia desde que se transformou em frequentador assíduo da Livraria Leonardo da Vinci, no Rio, por volta de 1964: “Era visto duas ou três vezes por semana, às cinco da tarde, sentadinho numa poltrona, ao fundo. Foi onde eu o conheci”.

O período faz desaguarem memórias em fluxo de consciência: “Drummond adorava telefone, aquela vozinha de velha inglesa, sotaque mineiro, falava depressinha. Marly era adorável, educadíssima, teve como padrinhos de casamento Manuel Bandeira, Cecília Meireles, que chamava de Dona Cecília. Cecília era altiva, distante, mas não antipática. Dona Cecília é Dona Cecília desde que nasceu, imagina”. Levava Clarice Lispector, sua vizinha no Leme, para os poucos eventos sociais que ela frequentava, e recorda um episódio em um táxi, com um motorista que insistia em manter a música ligada em volume alto. “Clarice tinha a mão deformada por um incêndio. Tinha caquinhos de unhas, que ela pintava. Botou a mão no ombro do taxista, como uma bruxa: ‘O senhor vai diminuir ou não?’. Na hora ele desligou”, gargalha.

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Os gênios literários que mais o comovem são o francês Marcel Proust e o brasileiro Machado de Assis. “Machado de Assis é impossível. Negro, filho de um pedreiro negro com uma lavadeira de origem portuguesa, açoriana. Criado pela madrinha, patroa do pai e da mãe. Sem formação acadêmica, com formação primária evanescente, termina como um grande funcionário público, fazendo relatórios importantíssimos sobre a situação dos escravos. E o acusaram, e ainda o acusam, de ter querido se branquear. Imagina.” Já em São Paulo, a fase Siciliano produziu mais alguns sucessos de crítica e/ou público: Hilda Furacão (1991), de Roberto Drummond, Memorial de Maria Moura (1992), de Rachel de Queiroz, Na Sala com Danuza (1992), de Danuza Leão.

A leitura, seja como editor ou leitor comum, tem para Pedro Paulo um efeito vital: “Deixo de ser eu quando estou lendo. Se estivesse entregue a mim mesmo, já teria tentado me matar antes de 2005 e 2010 – as duas tentativas de suicídio que fiz. Sobre essas coisas não converso com Carlos Henrique. Um casamento, para durar, não pode ter intimidades exageradas”. De fato, o marido, que o amparou nesse período, se aproxima para ouvir sempre que o assunto entra em pauta. “Mesmo com antidepressivo, a vontade de morrer não sai”, confessa Pedro Paulo à certa altura. Diz que a vontade veio em 2005 e nunca mais foi embora: “Mesmo com remédio, fico triste, coisa que nunca fui. E aí fico triste de ficar triste”.

Chamado de “Mr. Black Pedro Paulo” por um funcionário “velhinho” do aeroporto de Nova York de quem ficou amigo, declara-se pardo no censo do IBGE. “Olha bem o meu fácies, como diria Lombroso [Cesare Lombroso, médico italiano que escreveu Tratado Antropológico Experimental do Homem Delinquente, em que classificou os tipos de criminosos de acordo com suas características corporais]. Me orgulho de minha genealogia.” Detesta a expressão “lugar de fala”, embora reconheça sua legitimidade: “Não tenho lugar de fala nem no branco puro nem na periferia preta”.

A trajetória de ascensão e queda enseja a pergunta: qual é a classe social de Pedro Paulo de Sena Madureira? “Não sei. Não sei qual é a classe social a que pertenço. Este apartamento de 240 metros quadrados está penhorado.” Mesmo que nos últimos anos venha vendendo objetos de valor, ele se irrita quando indagado se gostaria de ser reabilitado como editor. “Não quero ser reabilitado, querido, tenho horror dessa palavra. Prefiro ficar fodidão do que ser reabilitado por essa gente. Não é orgulho, não. Não preciso. Eu sou Sena Madureira.”