Por Joyce Pascowitch
Foto Paulo Freitas
Seguimos trilhando por tempos desafiadores. A pandemia da Covid-19 cedeu à vacinação em massa, mas ainda assombra o planeta com novas ondas e cepas. Também deixou sequelas – físicas em milhões de pessoas que tiveram a doença e emocionais em toda a humanidade. Após momentos impactantes como os que vivemos com a chegada do coronavírus, vem o luto. Luto pelos mortos, luto por tudo que perdemos, desde empregos até vida social. Para resgatar o que nos foi tirado é necessário ressignificar nossa vida, processos, crenças. E é aí que entram profissionais como Mariana Clark. Especializada em psicologia positiva, ela exerceu por muitos anos o cargo de executiva de RH de grandes organizações. “Em um determinado momento notei que os processos usados na relação com os funcionários estavam errados. Em 2016 conheci o capitalismo consciente, movimento cuja proposta é fazer com que as empresas sejam lugares de cura e não de adoecimento”, explica ela, que atuou junto à população de Brumadinho (MG) na época da tragédia com a barragem da Vale, e se dedica a conscientizar lideranças de grandes empresas de que é crucial lidar com o luto de cada um e cuidar da saúde emocional das pessoas que ali trabalham.
PODER: O que é o luto, no sentido amplo da palavra?
Mariana Clark: O luto é um processo de rompimento de vínculo. À medida que rompemos um vínculo com alguém ou alguma coisa, entramos em processo de luto. Só que não passamos por isso só quando perdemos pessoas que amamos. Existe uma categoria chamada “lutos não reconhecidos”, que são essas experiências de rompimentos que vivemos ao longo da vida. Pesquisas apontam que passaremos por 20 dessas em média e, assim como com o luto de quando perdemos alguém, temos que reaprender a viver a partir dessas dores. O luto é uma dor se ajustando à vida e vida se ajustando a ela. Quais são esses “lutos reconhecidos”? Aborto, infertilidade, síndrome do ninho vazio, aposentadoria, perda de animal de estimação, divórcio… são experiências que desencadeiam sentimentos muito desagradáveis, como raiva, inveja, medo, desamparo, angústia, impotência. E o processo de luto exige enfrentamento. É preciso viver o luto completamente.
PODER: É justamente com esse luto que você vem trabalhando junto às empresas?
MC: Sempre tivemos que separar a vida profissional da vida pessoal, mas isso está mudando em função de tudo o que temos vivido, das estatísticas de adoecimento estarem crescendo assustadoramente no nosso país. Mesmo antes da pandemia o Brasil já encabeçava pesquisas como o país mais ansioso, mais deprimido do mundo, por uma série de razões, desde o aumento da violência, do desemprego, da fome, até por causa da felicidade tóxica das redes sociais, que é incompatível com a condição humana. Passamos 1/3 de nossa vida conectados ao trabalho, então esse deve ser um lugar de maior bem-estar e não fonte de dores, de medos, de ameaças. O contexto corporativo sempre foi adverso e árido, e agora começamos a abrir espaço para o acolhimento. Costumo trabalhar capacitando líderes para que sejam mais tolerantes com seus funcionários e possam se tornar uma base segura para as equipes, afastando processos de adoecimento mental, como transtornos de ansiedade e burnout, muito comuns atualmente. À medida que conseguem encarar suas próprias dores e ressignificá-las, vão ter condições de passar isso para os outros.
PODER: Onde surgiu esse formato de gestão?
MC: Minha escola vem dos meus anos dentro de organizações querendo cuidar melhor das pessoas. Esse sempre foi o meu propósito. E pude fazer isso como líder. Para mim fazia mais sentido olhar o ser humano em sua integralidade. Depois, em 2016, quando saí da última empresa onde trabalhei, conheci o capitalismo consciente, movimento que tem como proposta fazer com que as organizações sejam lugares de cura e não de adoecimento. Precisamos repensar a forma como estamos fazendo as coisas para que possamos alcançar o cliente, o colaborador, a família do colaborador, o fornecedor, os stakeholders.
PODER: Seguindo a cartilha ESG (sigla em inglês para ambiental, social e governança), não?
MC: Sim. A proposta é juntar essas agendas fazendo com que as empresas pensem em um lugar diferente. É um caminho sem volta. Os investidores querem investir em organizações que sejam conscientes com o meio ambiente, com seus funcionários. Tenho sido mais procurada com essa preocupação, de como transformar a empresa em um lugar diferente, menos tóxico e ampliar a consciência, porque todos preferem se conectar, investir, consumir produtos de companhias que tenham essa dimensão afetiva.
PODER: Nessa fase de retomada, em que a vacinação permite mais liberdades, parece que as pessoas estão com mais dificuldades do que no auge da pandemia.
MC: Existem profissionais que falam que ainda estamos no “modo sobrevivência”, que é esse entorpecimento, esse choque. O luto coletivo se caracteriza por três grandes aspectos: morte em massa, sobreposição de perdas – seja de pessoas, trabalho, identidade, fé – e o fim do mundo conhecido. Na virada de 2019 para 2020 fizemos planos para um futuro melhor. Veio o coronavírus e devastou esses sonhos. Essa ruptura gerou um trauma generalizado. Ainda estamos em estado de ameaça e vigília constante.
PODER: Você fez parte da equipe de psicólogos que trabalhou com as famílias de Brumadinho (MG). Como foi essa experiência?
MC: Minha vida profissional é dívida entre antes e depois dessa experiência. O ritual de despedida tem uma função importante que é a concretude daquela morte. Tem uma função cognitiva e emocional. Quando se vê o corpo da pessoa que ama, o rompimento acontece de verdade. Essa foi uma questão recorrente no caso das famílias das vítimas de Brumadinho. Aprendi que é fundamental se despedir das pessoas através do corpo, da imagem concreta.