Por Carol Sganzerla
Fotos Fernando Torres
No discurso que proferiu no início de dezembro ao ser eleita a profissional de inovação do Prêmio Caboré 2021, o mais cobiçado do mercado publicitário, Samantha Almeida relembrou um episódio marcante da sua infância. Nascida e criada na favela da Rocinha, durante uma enchente no Rio de Janeiro do fim da década de 1980, enquanto sua casa era levada pela enxurrada de água, sua mãe correu para salvar duas coisas: seu uniforme e a mochila da escola. “No ponto de ônibus, ela me disse: ‘Por mais que a gente perca a casa, você nunca vai perder a aula. Porque se tem uma coisa que pode mudar a sua vida é a educação’.”
Essa passagem foi uma das tantas demonstrações que Samantha teve de que seus pais tinham como prioridade a sua formação, mesmo sob uma condição de vida limitante. “A minha mãe era paulofreiriana sem nunca ter lido Paulo Freire. Ela era muito preocupada com a minha construção de cidadã. Uma mulher que veio para o Rio fugida de uma situação de violência doméstica em Minas Gerais e é acolhida na rodoviária por um projeto social e levada para a Rocinha”, conta a filha. “Durante muito tempo, meu pai se manteve em empregos para garantir que eu tivesse bolsa de estudos”, diz. “Ele entendia o quanto aquilo era um privilégio e usou todas as ferramentas disponíveis para que quando a vida escolar acabasse, eu tivesse construído relações e um senso crítico muito claro de até onde poderia chegar.”
Um desses empregos era na TV Globo, onde exercia o ofício de eletricista e, não raro, levava a filha para os estúdios. “Eu tinha uma relação muito lúdica com o trabalho do meu pai. Ele sabia o quanto eu era encantada por aquele backstage e me levava para as gravações”, relembra. “Ele queria alimentar o meu imaginário de possibilidades porque a gente vinha de uma realidade muito pobre. Era uma maneira dele garantir que eu soubesse que existiam outras realidades e que eu visse como eram construídas. Para ele, era um processo pedagógico, para me ensinar a desejar a não permanecer onde eu estava e sonhar com outros futuros possíveis. Hoje entendo que ele fazia questão de me levar em dias que cantores negros iriam se apresentar, me levava para conversar com o Antônio Pitanga.”
Cerca de 30 anos se passaram da última vez que Samantha, ainda menina, pisou naqueles estúdios até dois meses atrás, quando voltou à emissora como diretora de criação e conteúdo dos estúdios Globo. “Quando coloquei o pé no programa do [Marcos] Mion, o cheiro do estúdio me trouxe uma memória afetiva incontrolável. Pensei: ‘Eu também pertenço a esse lugar’. Tenho a sensação quase de um complemento de ciclo, primeiro pessoal, depois profissional, pois a Globo fez parte de um imaginário que construí sobre a comunicação, de como aquilo era produzido, tudo isso moldou meu desejo profissional”, conta Samantha, que passa a ser responsável pela área de fomento de conteúdo. “É um hub de insights, é um olhar sobre o mundo, um curador de novos talentos, sejam eles responsáveis pela nova dramaturgia, sejam pessoas capazes de fazer formatos inovadores para programas de variedades. Trata do presente, mas fomenta o pensamento para essa prática amanhã.”
Samantha sempre teve uma visão disruptiva das coisas e já no começo da carreira mostrou ter um olhar crítico. Em seu primeiro emprego, na Levi’s – ela é formada em moda pela Faculdade Santa Marcelina –, integrava a equipe de estilo e viajava o Brasil levando os mostruários com as tendências da marca, de Curitiba ao sertão do Cariri. “Comecei a perceber que estava em Salvador tentando dizer que uma jaqueta com gola de pelo era a coisa mais moderna do mundo e o termômetro marcando 40 graus”, relembra. “Essa dicotomia me deu a ideia de fazer o trabalho inverso. Passei a fotografar as pessoas, a mostrar a realidade. Colhia essa vivência e mandava para o global. Esse olhar começa a me dar um outro lugar de carreira, comecei a perceber que não existe só o caminho de entrega da informação, mas também o caminho de resposta dessa informação e que isso era um produto muito bem quisto pela minha direção”, conta.
Dali, Samantha migrou para a área de beleza e passou a ser responsável pelas campanhas de comunicação e estratégias de marca na Estée Lauder. Mas vieram os questionamentos. “Quando você está no mercado de beleza e não consegue trazer para esse lugar mulheres como eu, negras, de origem diversas ou periféricas, o que estou construindo não me reflete. Eu fazia parte de um sistema que constrói identidades para que eu rejeite a minha própria”, reflete. Em meados dos anos 2000, quando o mercado das influenciadoras ainda era incipiente, Samantha propôs fazer um lançamento de produto pautado nessas meninas, mas com uma listagem fora do eixo Rio-São Paulo, que não falavam de moda do luxo, mas despontavam como grande influência dentro do target jovem que queriam conquistar. “Quando você nasce da história das pessoas, quando provoca que a narrativa venha de fora para dentro e usa as experiências como combustível para criação, você tem uma mudança na hierarquia de valores, a mudança do que é considerado bonito, porque as pessoas quando são envolvidas no processo te alimentam de referências inesperadas.”
“Times diversos são questionadores, provocadores, você sai do lugar da sabedoria absoluta e acho que a gente tem medo disso, da perda de espaço”
Ainda no meio da beleza, Samantha assumiu como líder da área de conteúdo digital da Avon e novamente balançou as estruturas levando diversidade e inclusão para as campanhas. Entre passagens como diretora de conteúdo da agência Ogilvy e como head do Twitter Next, Samantha sempre promoveu a pluralidade nas equipes que liderou. “A verdadeira diversidade existe para construir times mais inovadores, para achar soluções para problemas que as pessoas podem não estar vendo. Times diversos são questionadores, provocadores, você sai do lugar da sabedoria absoluta e acho que a gente tem medo disso, da perda de espaço. Estamos falando de uma readaptação das lideranças que precisam pensar para além, retomar um lugar de responsabilidade coletiva que a gente não tinha”, diz.
Por onde quer que passe, Samantha leva suas reflexões e seu repertório vasto e diverso. Agora, trabalhando para o maior grupo de comunicação do país, mudanças certamente serão notadas na área do entretenimento. “Quem ganha quando eu construo produtos culturais que não representam a população, que não empregam a população, que não inspiram a maior parte da população? Ninguém ganha. Quando estamos na sala e dizemos que precisa trazer pessoas negras para algum conteúdo, que as mulheres no comando criam uma liderança mais humanizada, não é causa própria, é para ter um mínimo de dignidade coletiva de futuro. Essa é a grande mensagem. A gente precisa revisitar o que é o significado de poder”, finaliza.