AS ALMAS BELAS NA ÉPOCA DA DIVERSIDADE E DAS IDENTIFICAÇÕES – POR DANIEL OMAR PEREZ

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Por Daniel Omar Perez – professor de filosofia na Unicamp e psicanalista. Estuda a constituição do sujeito e as identificações individuais e coletivas, os modos em que se articulam grupos, coletivos, massas, tanto intelectual quanto afetivamente

“Eu tenho um amigo judeu, logo, não sou antissemita.” Ter um amigo judeu, ou negro, ou estrangeiro foi e é um recurso não pouco comum daquele que procura um álibi para expor publicamente sua superioridade moral de “bela alma”. A bela alma, como propõe Hegel, na Fenomenologia do Espírito, considera que seus julgamentos de valor são o único critério válido para ajuizar as ações dos outros. Porém, a lei moral proclamada por essa bela alma é um universal abstrato, carece de determinações concretas. Escrúpulos e hipocrisias sustentam a bela alma na má-fé de um mundo reconciliado, onde, se todos fôssemos belas almas e tivéssemos um amigo negro, judeu ou estrangeiro, então já não haveria contradições, antagonismos e oposições. O abstrato está em exibir meu amigo negro ou judeu ou estrangeiro no lugar público, dar um lugar à mesa por algum tempo, dirigir um sorriso a ele, mas retorná-lo ao seu lugar de mero hóspede, de estranho, de excluído resgatado por mim pelo menos por algum momento. O abstrato consiste em constatar sua situação de excluído, exibir sua condição de modo indignado, de fazer uma imagem discursiva ou inclusive fotográfica de minha relação, como bela alma, com o outro estranho, excluído, miserável. O mais fácil do mundo hoje é constatar que há racismo, xenofobia ou sexismo e é por isso que a bela alma hegeliana, que nada quer mudar, se soma ao coro da indignação onde nada pode ser feito.

Uma versão mais patética da bela alma é aquela que se comove com histórias de superação: a história do judeu sobrevivente, do negro sobrevivente ou do estrangeiro que começou pobre e indocumentado e agora é dono de um carro de luxo e uma casa de dois andares num país que não é o dele, sublinhando esse último detalhe. A cena se apoia no sentimento mais degradado que comportaria o significado da palavra compaixão. Dar um lugar, uma cota para o excluído, quer dizer, para uma pequena parcela de excluídos.

Giuseppe Tomasi di Lampedusa escreveu, em 1956, o romance Il Gattopardo. Trata-se da história de Don Fabrizio, príncipe de Salina que, diante das mudanças políticas que colocariam em xeque a ordem hierárquica, decide uma estratégia para preservar seus privilégios aderindo ao movimento. Em 1963, Visconti filmou a história e a popularização acabou gerando o uso de um termo: o gatopardismo, que seria algo assim como fazer de conta que se muda tudo para não se mudar nada. Aquele que, pela sua posição de classe, consciente ou inconscientemente, querendo ou não, reproduzia as condições que originaram a revolta, agora, no momento oportuno, surfa a onda do discurso de moda e assume as bandeiras da bela alma hegeliana.