Uma das principais vozes no debate sobre financiamento ao desenvolvimento brasileiro, a economista e professora Lavinia Barros de Castro alerta: sem uma agenda estabelecida de longo prazo, as preocupações imediatas, como o ajuste das contas públicas, podem abortar a recuperação da economia e o avanço social
Por Sergio Leo
Fotos Zô Guimarães
Doutora em Economia pela UFRJ e em Ciências Sociais pela UFRRJ, com sanduíche na Universidade de Berkeley, Lavinia Barros de Castro alerta para um assunto urgente no Brasil: como sair da crise econômica e de saúde de maneira sustentável? É possível planejar com tanta incerteza na economia e na política?
Sem uma agenda de longo prazo, as preocupações de curto prazo, como o ajuste das contas públicas, podem abortar os movimentos de recuperação econômica que começam a aparecer nos indicadores, avisa ela.
Professora no Ibmec no Rio de Janeiro especializada em história econômica e programas de financiamento ao desenvolvimento, Lavinia compartilhou sua experiência com a PODER por Zoom, da casa onde mora e mantém, em sua ampla biblioteca, obras herdadas do pai, um dos grandes nomes da economia brasileira, Antônio Barros de Castro (ex-presidente do BNDES). Ela recomenda: “Precisamos saber onde colocar nossas fichas”. E conta como fazer isso nesta entrevista exclusiva.
PODER: COMO É POSSÍVEL FALAR EM PLANEJAMENTO NESTE MOMENTO COM TANTAS MUDANÇAS?
LAVINIA BARROS DE CASTRO: Com Juscelino Kubitschek, nos “50 anos em 5”, as propostas vinham redondas aos grupos executivos, com questões técnicas, soluções legal e financeira, e instrumentos macroeconômicos para impulsionar cada setor. Essa visão de como destravar as questões, inclusive fazer a solução legislativa, para passar no Congresso, foi talvez o grande motivo do sucesso. Mas em um contexto muito diferente do atual; havia hipertrofia do Executivo e foram criados órgãos que impulsionaram isso. O II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), no governo Geisel, também foi muito diferente: governo militar, sem consulta à população. Hoje, há uma complexidade institucional para estabelecer novos planos.
PODER: HOJE, INCLUSIVE, O JUDICIÁRIO INTERFERE…
LBC: Exatamente. Por outro lado, a relação do Estado com a sociedade mudou. É uma sociedade em rede, que questiona. A capacidade de governança, de o Estado conseguir implementar políticas é diferente. O mundo antes da Covid-19, porém, já caminhava para políticas industriais que requerem planejamento. Não tem como fugir: as grandes agendas atuais são tecnológicas ou climáticas, e elas, por definição, são de longo prazo. A agenda da descarbonização tem metas para 2050, não tem como não planejar. A crise está sendo uma “parteira”: precipita a discussão sobre crescimento da desigualdade, a questão climática, a política industrial…
PODER: HÁ UM DEBATE SOBRE SE O BRASIL DEVE FOCAR EM SETORES ONDE É MAIS COMPETITIVO, COMO O AGRONEGÓCIO, E IMPORTAR A TECNOLOGIA QUE NÃO PRODUZ. O QUE PENSA SOBRE ISSO?
LBC: A pandemia, nisso, também trouxe elementos novos ao debate. Lá fora já se discutia a manufatura avançada, a indústria 4.0, o made in China… uma revalorização da indústria. Aqui, no primeiro trimestre de 2021 o peso da agropecuária e da indústria extrativa no PIB ultrapassou o da indústria de transformação. A última vez em que isso aconteceu foi no fim dos anos 1950. Esse dado é muito chocante. Nas exportações, a indústria já havia regredido, revertendo a diversificação que tínhamos. Agora estamos falando da própria estrutura industrial, uma queda que começa em 2008.
PODER: O QUE SERIA UMA POLÍTICA INDUSTRIAL NOS DIAS DE HOJE?
LBC: O mundo já estava se reposicionando, o FMI chegou a lançar um paper sobre “a volta daquele que não pode ser nomeado”, que é a política industrial. A pandemia trouxe novas questões: investir em algumas tecnologias, que chamamos habilitadoras, que perpassam vários setores, como biotecnologia, ótica e eletrônica; usar compras governamentais para impulsionar isso; e buscar essas novas tecnologias. Ao mesmo tempo há a questão da colaboração, dos bens públicos globais, como surgiu na produção da vacina. Passa a haver incentivos muito maiores para plataformas colaborativas de inovação, que já estavam ocorrendo.
PODER: E O QUE SERIA UMA POLÍTICA INDUSTRIAL PARA O BRASIL?
LBC: Há um texto muito interessante de cinco autores do BNDES [Uma visão de política industrial para o Brasil, resultados a partir de uma matriz tecnológica, de Thiago Miguez, Gabriel Daudt, Bruno Plattek, Luiz Daniel Willcox e Sergio Schmitt] sobre o que seria uma política industrial para o Brasil, em que partem da identificação das “tecnologias-base”, com maior poder de multiplicação no país. Seria uma política centrada nessa ideia de tecnologias habilitadoras, partindo de nossa base industrial. E se perguntam o que temos de destravar, em questões regulatórias, de financiamento, de infraestrutura, de tecnologia de informação.
PODER: TEM SIDO ANUNCIADO UM ESFORÇO DE INVESTIMENTOS EM INFRAESTRUTURA, COM PRIVATIZAÇÕES, NOVOS MARCOS REGULATÓRIOS.
LBC: Existe um ciclo de [investimentos em] infraestrutura vindo, só que, pelas perspectivas, não alcançará os 4,5% do PIB que precisamos. Não existe desenvolvimento com esse gap que temos em infraestrutura, senão vai matar a política industrial ainda no ovo. Tem duas dimensões: a econômica, porque a infraestrutura é fundamental para produtividade e competitividade; e a social, que é saúde, educação, segurança. As pessoas que mais sofreram com a pandemia são as mais vulneráveis e pobres, a recuperação tem de se dar em novas bases e tem crescido o consenso internacional sobre necessidade de crescimento com inclusão.
PODER: OS ESTADOS UNIDOS LANÇARAM SUA PRÓPRIA AGENDA, QUE IMPLICA EM VULTOSOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS. NO BRASIL, AS RESTRIÇÕES FISCAIS NOS IMPEDEM DE SEGUIR O MESMO CAMINHO?
LBC: A questão é que, se não continuarmos crescendo, as restrições fiscais não serão superadas. Não adianta fazer uma série de restrições fiscais que desabilitam o crescimento. O que há no plano do presidente Joe Biden que é interessante é essa pegada da infraestrutura e as tecnologias habilitadoras: precisamos saber onde colocar nossas fichas. E tem a pegada social, de que não podemos prescindir no Brasil, nesse momento em que se agravaram questões de desigualdade e pobreza. Precisamos de uma agenda de retomada de emprego e renda no Brasil. É a maior questão.
PODER: A INFLAÇÃO NÃO VAI SER UM OBSTÁCULO ÀS MEDIDAS DE CRESCIMENTO?
LBC: Temos de distinguir entre inflação e mudança de preços relativos. Com um choque de commodities ou uma desvalorização cambial muito forte geram picos inflacionários, mas a alta só se retroalimenta se há alta indexação de preços, que não temos mais, ou excesso de demanda, que absolutamente não é o caso. Com inflação de custos, o instrumento a usar não é travar a economia. Se houver um overshooting no ataque à inflação, podemos abortar a retomada do crescimento econômico.
PODER: QUAL SERIA A PRIORIDADE HOJE?
LBC: Três problemas precisam ser atacados simultaneamente. Precisamos de um grande plano de infraestrutura, sustentável, resiliente. E política industrial tem de deixar de ser uma expressão que não pode ser mencionada, como diz o FMI. É identificar quais tecnologias podemos impulsionar, que são multiplicadoras. Não vamos escolher um setor, mas uma tecnologia que vai se ramificar para vários outros setores. Temos de perguntar o que está travando, e atacar esses pontos.
PODER: E O TERCEIRO PROBLEMA?
LBC: Temos de enfrentar as questões de desigualdade. O Brasil é desigual em todas as dimensões: na renda, no gênero, na raça. Só que o mundo mudou. E, infelizmente, a pandemia agravou essas desigualdades. n