UNIVERSO CIRCULAR

Um modo de produção em que nada se desperdiça e tudo se transforma. A economia circular parte da premissa de que é necessário reduzir, reutilizar, recuperar e reciclar materiais e energia. Além do impacto ambiental e social, o modelo é capaz de incrementar US$ 17 bilhões na economia brasileira até 2030

Por Nivaldo Souza

O que a crise hídrica – que pode levar o brasileiro a reviver o “apagão” energético do início do século –, a última reunião de cúpula do G7, o pacote trilionário de recuperação do governo Joe Biden e a propagação de marketplaces com produtos usados têm em comum? São as faces de um losango chamado economia circular, conceito que vem ganhando destaque no debate econômico por se opor ao modelo de desenvolvimento linear, baseado no processo de extração de matérias-primas, transformação delas em produtos, consumo e descarte. A “circularidade” visa reduzir o impacto do homem na natureza em busca da sustentabilidade. Propõe otimizar o percurso produtivo a partir da reutilização de insumos reciclados e o menor uso de recursos naturais. É uma aposta na mudança da maneira como o mundo se desenvolveu desde que o homem decidiu queimar carvão para alimentar máquinas no início da Revolução Industrial. “A economia circular é um conceito sistêmico que considera que vivemos em um planeta com recursos finitos e a lógica linear não faz mais sentido na medida em que a produção, o consumo e o desenvolvimento evoluíram a um patamar que se tornou insustentável”, explica Juliana Picoli, especialista em ciclo de vida de produtos e pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV.

Os ambientalistas criaram uma metodologia para medir quanto utilizamos da natureza em relação à sua capacidade de recuperação, o Dia da Sobrecarga da Terra (Earth Overshoot Day). Em 2020, a sobrecarga ocorreu em 22 de agosto. Ou seja, o modelo econômico atual utilizou, em apenas oito meses, todos os recursos naturais necessários para manter o padrão corrente de consumo da humanidade por um ano. “Esse dia costumava ficar mais próximo de dezembro. Hoje, começamos os anos no vermelho”, observa Juliana.

CONSUMIDOR CONSCIENTE

O desgaste do planeta desperta cada vez mais atenção entre os consumidores e força as empresas a mudarem. Pesquisa recente da consultoria McKinsey indicou que 85% dos brasileiros se sentem melhor comprando produtos sustentáveis. A preocupação do consumidor pode levar a mudanças capazes de fazer a lógica incrementar US$ 17 bilhões na economia brasileira até 2030, segundo estimativa do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS).

Otimizar o percurso produtivo a partir da reutilização de insumos reciclados é a base da economia circular

Mas, se de um lado a circularidade possibilita ganhos econômicos, no sentido inverso, se nada for feito para mitigar as mudanças climáticas, todos iremos perder. Foi essa a conclusão do G7, bloco formado pelas sete maiores economias do globo (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), após reportar que seu Produto Interno Bruto (PIB) perde 8,5% ao ano por causa de crises climáticas cada vez mais recorrentes. Não à toa, os líderes do G7, reunidos em junho na Inglaterra, calcularam ser necessário aportar em média US$ 1 trilhão por ano no pós-pandemia para promover uma retomada econômica mais sustentável no sentido de diminuir o aquecimento global. O primeiro passo foi o anúncio coletivo de suspensão de subsídios públicos para geração térmica de energia com a queima de carvão até dezembro.

Em paralelo, os EUA deram um passo firme em direção à economia circular ao lançar um pacote de US$ 8,2 trilhões em investimentos até 2031, tendo entre seus motores a circularidade. O pacote de Biden pretende, por exemplo, acelerar a presença de veículos elétricos nas ruas americanas, diversificar a matriz energética para reduzir a dependência de combustíveis fósseis e estimular uma industrialização alinhada à meta do Acordo de Paris, cujo objetivo central é limitar a elevação da temperatura a 1,5 grau em relação à Era Pré-Industrial.

MUDANÇAS À VISTA

A pandemia acelerou tendências transformadoras nas empresas, segundo relatório da consultoria PwC. O remodelamento de modelos de negócios entrou definitivamente na agenda empresarial. O capital debate como reduzir o uso e a perda de recursos, como ampliar fontes renováveis de energia e como fazer os produtos circularem por mais tempo entre os consumidores. “As empresas começam a notar que essa mudança faz sentido no aspecto transformacional, de negócio e financeiro, porque, no momento em que se consegue trazer outros fornecedores para a cadeia de produção, com todos engajados em economizar e compartilhar recursos, cria-se um ecossistema onde não tem desperdício. Se não tem desperdício, não tem custo. Isso torna a empresa mais eficiente”, avalia o sócio da PwC Brasil Ronaldo Valiño.

Existe, contudo, um caminho a ser percorrido no Brasil. Somente 30% do setor industrial havia ouvido falar de economia circular até 2019, conforme estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI). A pesquisa então estimulou os industriais a dizerem se praticavam atividades como reciclagem de materiais, substituição de serviços presenciais por digitais, aumento da vida útil de produtos por meio de ecodesign e manutenção, entre outros. Constatou-se que 76,5% das empresas do setor de transformação realizavam essas ações típicas da economia circular. O caminho da universalização da circularidade, portanto, parece não ser muito longo. “Fica claro que as empresas já adotam práticas relacionadas à economia circular, porém não conseguem associá-las ao tema”, observou o relatório da CNI.

‘‘Se não tem desperdício, não tem custo. Isso torna a empresa mais eficiente”

Ronaldo Valiño, sócio da PwC Brasil

CIRCULARTECH E MINERAÇÃO URBANA

O que você faria se precisasse descartar uma televisão, smartphone, notebook, máquina de lavar ou geladeira? O ideal é destinar a recicladoras especializadas ou lojas com programas de reciclagem de eletrônicos. Mas a maioria das pessoas joga no lixo comum. Cada brasileiro gera em média 10,2 quilos de lixo eletrônico por ano. Menos de 1% do resíduo é reciclado no país. Nas contas da Organização das Nações Unidas (ONU), o mundo gerou 53,6 milhões de toneladas de resíduos eletrônicos em 2019 e só reaproveitou 17,4%.

Esse lixo é uma verdadeira mina de ouro… além de outros metais: cobre, prata, zinco, estanho. Todos de alto valor no mercado e elevado poder de poluição. Ao processo de recuperação dos microgramas de cada metal presente em eletrônicos dá-se o nome de “mineração urbana”. Há empresas especializadas nesse garimpo. Nenhuma instalada no Brasil. O país exporta sucata para mercados onde tais mineradoras operam – caso da Bélgica, Canadá e China.

Alcir Pereira é gerente comercial da Reciclo Inteligência Ambiental, especializada em eletroeletrônicos. Ele conta que a empresa, criada há 17 anos, processa entre 800 e mil toneladas por mês. Até 2017, a companhia recolhia equipamentos e exportava como sucata para países com mineradoras urbanas. Mas há quatro anos as coisas mudaram: a Reciclo Inteligência Ambiental decidiu recuperar notebooks e outros equipamentos em condição de serem revendidos. O recondicionamento e a revenda respondem atualmente por cerca de 50% do faturamento da empresa, superando a comercialização de sucata (30%) e a prestação de serviços (20%). “A gente viu que o mercado seguia para esse modelo e entendeu que se conseguisse estender a vida útil dos equipamentos contribuiríamos mais para o meio ambiente”, afirma Pereira.

Alcir Pereira, gerente comercial da Reciclo Inteligência Ambiental

O movimento de circularidade foi provocado pelo Plano Nacional de Resíduos Sólidos, ao determinar que fabricantes de eletroeletrônicos devem criar mecanismos de logística reversa. Este é o primeiro ano no qual o setor deve reciclar ao menos 1% de tudo o que vende. Estima-se que 21 mil toneladas devam ser recicladas em 2021. A meta subirá gradualmente até atingir 17% dos eletrônicos comercializados anualmente em 2030, totalizando cerca de 364 mil toneladas.

O empresário Fernando Perfeito viu aí a oportunidade de criar uma circulartech – startup de tecnologia limpa. Ele lançou a Circular Brain em 2019 como plataforma virtual de gestão de resíduos, que auxiliou a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) a formular a regra de reciclagem. A empresa já montou uma rede de 12 recicladores como a Reciclo no país. A meta é chegar a 22 estados ainda este ano.

Perfeito acredita que será possível comercializar “créditos de reciclagem” para empresas que precisam cumprir a lei. A Circular Brain desenvolveu com o governo federal uma metodologia para certificar todo processo, garantindo à indústria de eletroeletrônicos os comprovantes legais. “O crédito de reciclagem funciona de maneira similar ao crédito de carbono, permitindo a uma empresa compensar o seu compromisso ambiental. A diferença é que o crédito de carbono é voluntário, não existe obrigatoriedade legal. Já a logística reversa de eletrônicos é obrigatória. As empresas precisam reciclar parte de tudo que a gente liga na tomada. O crédito comprova com tecnologia de rastreabilidade que todas as frações do produto foram corretamente processadas”, explica ele.

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DESAPEGO NA MODA

A fotógrafa Fernanda Duarte, de 33 anos, deu à luz Nicolas há 3 meses. Mãe de uma menina de 10 anos, ela sabia que criança cresce na velocidade em que roupas e objetos, como carrinho e cadeira de segurança, ficam obsoletos. Por isso, optou por adquirir parte do enxoval em sites de desapego. Não foi a primeira vez que Fernanda decidiu reaproveitar algo em bom estado para continuar sendo usado. No ano passado, ela comprou fogão e geladeira do mesmo modo. “Procurando bem, fazendo uma peneira nesses sites, você encontra coisas boas que as pessoas estão trocando. Encontrei muita coisa boa pela metade do preço, pelo menos”, conta. Até pouco tempo, o hábito da fotógrafa recebia uma alcunha depre- ciativa: “comprar de segunda mão”. Agora, rebatizado na era tecnológica, o ato de “desapegar” está na moda. Nada é mais pujante para a econo- mia circular do que o desapego. Os consumidores de produtos de luxo também aderiram. Isso fez o Iguatemi 365, marketplace da rede de shopping centers, firmar uma parceria com o brechó virtual de luxo Etiqueta Única. O dinheiro obtido com as vendas, por quem decidiu passar adiante uma peça que não usa mais, gera um desconto de 10% na compra de um produto novo no marketplace. O gerente-geral de Iguatemi 365, Fernando Crizol, diz que a parceria objetiva levar os clientes a um movimento consciente de consumo. Os próximos passos do projeto podem incluir entregas com uso de carros elétricos e descarte de embalagens, que hoje são de plástico biodegradável. “Tem muita coisa que a gente ainda quer fazer”, afirma.