Trump Power: o déficit democrático que o presidente americano lega

O presidente americano pode ter enfim de deixar a Casa Branca, mas há dúvidas de que o déficit democrático legado pelo populismo de alta intensidade de líderes como ele será superado

Ilustração: David Nefussi

Por Paulo Vieira

No futuro, especialistas podem se ver tentados a dividir a história da democracia em AT e DT, antes e depois de Trump. Mesmo com a confirmação de sua derrota para o rival democrata Joe Biden e o início da contagem regressiva para ele desocupar a Casa Branca, o 45º presidente americano deverá deixar como legado duradouro uma forma de fazer política que juntou práticas populistas numa intensidade poucas vezes vista antes. Se não se pode dizer que Donald Trump inventou a fórmula, já que o populismo nos Estados Unidos remonta ao século 19, ele certamente a incrementou.

Desqualificação sistemática de adversários, hostilidade à imprensa tradicional, disseminação de mentiras – ou “fatos alternativos”, no surpreendente eufemismo usado logo após sua posse, em 2017 –, negacionismo científico e ambiental, apelo a um certo espírito de grandeza e identidade nacionais, manipulação emocional, intervenção em investigações de interesse, demissões arbitrárias, condenação das minorias, tolerância com a violência policial, desprezo pelas regras eleitorais. O coquetel é variado, e se visto de maneira individualizada, a partir de cada uma de suas partes, bastante déjà-vu. Até mesmo o slogan “Make America Great Again” foi chupado e reciclado do “Let’s Make America Great Again”, criado para a campanha vitoriosa de Ronald Reagan, em 1980. O problema é que tudo isso somado e oferecido generosamente por quatro anos seguidos à população levou ao que o colunista John Harris, cofundador do site Politico, chamou de “a mais profunda ameaça”. Diz Harris: “A grande ameaça de Trump não é a prisão ou o assassinato de jornalistas e opositores na calada da noite, algo que acontece no mundo, mas não nos Estados Unidos. A razão pela qual Trump é a mais profunda ameaça para tanta gente é que ele eviscerou o senso de normal de todos”.

De todas as centenas de especulações sobre o legado de Trump, a de Harris talvez tenha chegado ao ponto fulcral, justamente por inverter o sentido comum da análise política e fazer do predicado, sujeito do enunciado. O problema, enfim, é a passividade do cidadão americano, que acabou por se conformar a um novo padrão ético, bastante rebaixado, de seu presidente. Eis o tal senso de normal “eviscerado”. E se nem mesmo no potentado democrático do Ocidente os eleitores realmente se importam com os desmandos de seu líder, que dizer dos países da periferia do mundo.

É tentador refutar essa análise lembrando das colossais manifestações contra a violência policial e contra o racismo que levantaram os Estados Unidos este ano, mesmo com a necessidade de distanciamento social, algo não visto havia mais de meio século. Mas mesmo aí, Trump ofereceu sua tradicional dose de divisionismo, alocando truculentas forças federais para reprimi-las e incitando uma vez mais a polarização contra “lunáticos” ou mesmo “terroristas” – expressão usada por John Dowd, chamado de “advogado superstar” pelo presidente americano num retuíte. Com tudo isso, como sublinha em entrevista a PODER Maurício Santoro, professor do departamento de relações internacionais da Uerj, Trump contou com quase 50% dos votos dos norte-americanos nas eleições. “É muita coisa para mais de 230 mil mortos da Covid-19, para a recessão, para todos os protestos que aconteceram lá. Essa base social de Trump vai continuar inspirando muitas políticas, seja no âmbito local, por governadores ou prefeitos, seja no Congresso.”

Para Santoro, “a marca das democracias contemporâneas é o pluralismo e o espaço que as minorias têm na sociedade livre”. O populismo, segundo o acadêmico, “rompe com isso” – antagonizar essas minorias, muitas vezes em nome de um passado nostálgico inverossímil, seria um dos grandes motores desse movimento. “Trump não inventou o populismo, mas é a expressão contemporânea mais forte dessa tendência justamente por ter chegado à Presidência americana.”

Donald Trump e Joe Biden || Créditos: Getty Images

QUEBRA-REGRAS
Pode-se argumentar que não há relação de causalidade entre o acesso de líderes populistas ao poder e um déficit de democracia, mas é opinião corrente entre cientistas políticos que o momento pós-Trump não é de celebração. No já canônico Como as Democracias Morrem, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt afirmam que as grandes rupturas institucionais já não são feitas com tanques nas ruas, mas por microfissuras dentro da ordem constitucional, e a eleição de alguém como Trump pode catalisá-las. “Ao contrário de seus predecessores, Donald Trump é um quebra-regras inveterado. Sua administração é a menos pró-democracia desde a de [Richard] Nixon”, dizem os autores. Mesmo no campo político antagônico de Trump, Barack Obama tem algo a contribuir para o debate. No discurso da convenção do Partido Democrata que oficializou a candidatura de Biden, em agosto, o ex-presidente usou palavras duras contra Trump e seus seguidores: “Não os deixe levar nossa democracia”. “Em quatro anos, [Trump] não mostrou interesse em encontrar um ponto de equilíbrio. Não mostrou interesse em usar seu impressionante poder para ajudar as pessoas, exceto a si próprio e a seus amigos.” Em que pese estar a discursar menos como ex-presidente do que como alguém disposto a incitar – ainda que virtualmente – correligionários, a frase “não os deixe levar nossa democracia” não era apenas mais um ornato da elogiada oratória do ex-presidente. Obama ali juntava lé com cré: a partir de um discurso de confrontação contra uma suposta elite econômica e sobretudo contra uma elite intelectual, Trump conseguiu atrair eleitores com que à primeira vista não tinha afinidade alguma. Na opinião de Santoro, da Uerj, “apesar de uma vida bastante hedonista, ele conseguiu se comunicar com os religiosos; apesar de milionário, falou para o trabalhador da baixa classe média que o vê como um campeão contra a elite cosmopolita”. A questão é que, no poder, Trump e seus êmulos pelo mundo não baixaram a guarda e mantiveram suas bases aguerridas para um clima de confronto permanente, como se a campanha eleitoral jamais tivesse fim. Era disso que falava Obama. A vaga populista que elegeu Trump – e o ajudou a governar dessa forma beligerante –, é da mesma natureza da que alçou ao poder outros líderes improváveis como Matteo Salvini, na Itália, Viktor Orbán, da Hungria, e Jair Bolsonaro, no Brasil.

Barack Obama || Créditos: Getty Images

Na última semana de outubro, dias antes de 3 de novembro, o “election day” nos Estados Unidos, o centenário semanário The Economist, farol do liberalismo econômico e político mundial, foi lapidar: “Porque tem de ser Biden”, titulou em editorial, para na linha fina que aprofunda a manchete explicar que “Donald Trump dessacralizou os valores que fizeram dos Estados Unidos uma baliza para o mundo”. “A mais desorientadora marca da presidência Trump é o desdém pela verdade. Nada do que Trump diz é crível”, disseram os editores, acrescentando que, diante da insurgência dos protestos pacíficos após o assassinato de George Floyd, o “instinto de Trump não foi curar, mas retratar esses protestos como uma orgia de saques e de violência insuflada pela esquerda”.

Além de todos os prodígios que alcançou já mencionados, pode-se dizer que Trump deixa mais um: foi capaz de fazer esmagadora parte dos líderes, analistas e observadores do mundo democrático, dos moderados aos jacobinos, considerarem-no tóxico para o regime. Numa de suas frases mais relembradas, o dramaturgo Nelson Rodrigues costumava dizer que toda a unanimidade é burra. Assim, é bem capaz que, caso o conhecesse, Nelson simpatizasse com Trump.

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Matteo Salvini e Viktor Orbán, líderes populistas da Itália e da Hungria, alçados na mesma vaga que levou Trump ao poder