Fábio Venturelli, presidente do Grupo São Martinho, revela: ‘‘Todo mundo, de Madonna à Odebrecht, decidiu investir no etanol”

Presidente do Grupo São Martinho, uma das mais destacadas corporações do agronegócio brasileiro, vê conhecimento e boas práticas em muitos setores do campo. Na empresa de açúcar e álcool que lidera, os investimentos em biotecnologia e conectividade ajudaram a fazer da lavoura da cana uma espécie de parque de inovação.

Fábio Venturelli, presidente do Grupo São Martinho || Créditos: João Leoci / Revista PODER

Por Paulo Vieira  / Fotos: João Leoci

O agro brasileiro é pop, como quer aquela campanha de TV, ou d’antanho? É produtividade, rentabilidade e tecnologia aplicada a uma das atividades ancestrais do homem ou é essa atividade ancestral feita à moda antiga, com trabalho análogo à escravidão e a permanente e aviltante concentração da renda dela derivada? Fábio Venturelli, 53 anos, presidente há dez do Grupo São Martinho (GSM), grande produtor de açúcar e álcool (etanol) do país, com usinas no interior de São Paulo e Goiás e faturamento anual na casa dos R$ 2 bilhões, nem pisca para responder. Para ele, o campo é o “locus” onde biotecnologia, gestão inteligente, georreferenciamento e soluções de logística se encontram. Cinco vezes considerado pelo jornal Valor Econômico Executivo de Valor do agronegócio, Venturelli não tinha qualquer experiência no setor até entrar no GSM. Engenheiro de produção formado pela Escola Politécnica da USP e com carreira executiva forjada na Dow Chemical, ele vem tendo seu mandato regularmente renovado pelo board do São Martinho, grupo empresarial de capital aberto controlado pelos primos Luiz, Nelson e João Guilherme Ometto, parentes de Rubens Ometto, da Cosan. O açúcar e o álcool são os derivados tradicionais do caldo de cana, que também já serve de substrato para uma pletora de outros produtos de maior valor agregado. Na Califórnia, a empresa de biotecnologia Amyris, parceira comercial do GSM, encontrou na “sugarcane” o princípio ativo para cosméticos e óleos faciais que combatem rugas e promovem a recuperação da elasticidade da pele humana. Sorte dos tubarões, que anteriormente emprestavam suas glândulas para a produção desses óleos. Além disso, segundo Venturelli, um fungo alimentado pelo caldo de cana já vem sendo usado para produção de proteína vegetal. Por fim, espera-se para logo a comercialização em escala comercial de um açúcar de cana “zero cal”, ou seja, sem calorias. A mesma Amyris californiana anunciou em outubro passado um acordo com a empresa de refino de açúcar ASR para colocar esse produto revolucionário no mercado. “Já se conseguiu isolar uma molécula da fermentação do caldo de cana, e o produto gerado disso pode ser interpretado pelo nosso cérebro como açúcar. É um passo para resolver o grande problema dos adoçantes artificiais, que é promover a sensação de saciedade”, disse o executivo a PODER no escritório do GSM, em São Paulo.

DEBRET E RUGENDAS

Quando se pensa que a mesma cana dos engenhos de Pernambuco do século 17 está para ofertar à população a revolução do açúcar “zero”, é tentador pensar numa narrativa algo fabular que pressupõe inclusive a evolução da vida em sociedade no Brasil. Poucas culturas agrícolas são tão eloquentes em sintetizar nossos 519 anos de história pós-descobrimento quanto a da cana. Das mudas trazidas em 1533 pelo donatário português Martim Afonso de Sousa para São Vicente em obediência à prédica de Pero Vaz de Caminha (veja box) à intensa mecanização do campo nas últimas décadas, a cana serve como metáfora do Brasil que deixa para trás, ainda que não na velocidade esperada, o cenozoico. Até muito recentemente, as condições de trabalho nos canaviais do país eram talvez ainda piores do que o cotidiano dos escravos nos engenhos, ao menos aquele retratado nos traços elegantes das gravuras de Debret e Rugendas. A duríssima realidade dos boias-frias, exposta na greve dos anos 1980 em Guariba, na mesma região onde o GSM tem usinas, é página virada – a foice, pode-se dizer, virou memorabilia, já que a mecanização nas lavouras do grupo é da ordem de 99,8% e a queima da cana, só em 2018 tornada ilegal no Estado de São Paulo, é uma prática há tempos adotada. Na safra 2017/2018 foram moídas nas usinas do grupo 22,2 milhões de toneladas de cana, mais do que o dobro da quantidade de dez anos antes. Tudo isso, de qualquer forma, não configura grande novidade, quando se lembra que o agro brasileiro vem crescendo principalmente em produtividade, embora se expanda também em área agricultável, avançando sobre biomas delicados como cerrado e a floresta amazônica. O país é o maior produtor mundial de café, feijão, suco de laranja e, sim, açúcar. E segundo em soja, embora seja seu principal exportador. O GSM tem bom quinhão de responsabilidade nesse cenário, pois está na vanguarda tecnológica do setor, segundo Venturelli. Decisões que hoje parecem triviais, como a escolha da melhor colheitadeira, capaz de dar conta de 950 toneladas de cana por dia – o dobro da capacidade do maquinário da concorrência, segundo o executivo –, araram o terreno para ações de ainda mais impacto, como a implantação de uma rede 4G própria em todas as propriedades. É esse, aliás, o novo front tecnológico da corporação. Ter os 22 mil quilômetros de estradas internas cobertas por rede de transmissão de dados possibilita controle absoluto das movimentações da frota, algo crítico para o grupo. “O canavial é um verdadeiro labirinto. De noite, mesmo com apoio da operação de rádio, se o motorista pegar uma curva errada, pode demorar até um dia para sair de lá. Agora temos nosso ‘Waze’ para otimizar os carregamentos”, explica. A rede rural do grupo é um projeto pioneiro realizado em parceria com o CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações), o polo tecnológico de Campinas, com conclusão prevista para 2020 e investimento de R$ 40 milhões. Além disso, a análise de dados gerados por máquinas inteligentes (conectadas em sistema IoT, de internet das coisas) permite suporte remoto e prevenção de falhas mecânicas, além de um entendimento melhor das variáveis da lavoura, como a fertilidade do solo, a necessidade maior ou menor do uso de pesticidas etc., numa espécie de “hedge” rural. Venturelli é um adicto em tecnologia, e uma visita a startups do Vale do Silício no primeiro semestre de 2018 o deixou ainda mais em ebulição, pois reforçou sua crença de que o açúcar em breve não fará mais qualquer mal à saúde. “Quando o açúcar deixar de engordar, a alimentação vai mudar de paradigma. As pessoas farão pequenas refeições e se servirão direto no bufê de sobremesa”, diz. “Vão trocar a alface pelo pudim, e o arroz e o feijão pela musse.” A frase tem um quê de boutade, mas é bom adicionar a ela a impressão do repórter, que não ouviu a já desgastada palavra “inovação” sair da boca do executivo de maneira afetada. Mais, Venturelli não faz um discurso convencional pela inovação a qualquer custo, prefere exprimir uma certa visão estratégica sobre o tema. “Acredito que nessa nova fase da indústria mundial a inovação vai acontecer na mesma medida do desejo de adotá-la”, diz. “Se há algo que você ainda não tem hoje, pode ter certeza que isso está sendo desenvolvido neste momento. A questão é saber quem o desenvolve. Hoje não vale apenas investir na própria capacidade de inovar, é preciso estar inserido no ambiente onde a inovação acontece.”

Grupo São Martinho || Créditos: João Leoci / Revista PODER

MALINHA

A chegada de Venturelli ao GSM, em 2008, coincidiu com uma mudança de natureza da corporação. Até então, o grupo atuava como cooperativa, à maneira da gigante Copersucar, sem necessidade de brigar por mercado. “Precisei resgatar minha malinha de vendedor dos tempos da Dow”, diz. A guinada ocorreu logo após a abertura de capital da empresa em bolsa. “Sentava na frente do analista e não tinha o que falar. Imagina o que é não controlar a própria linha de receita.” Depois de centrar fogo na criação e na estruturação de todo um setor comercial, Venturelli voltou-se para a logística, central em sua tática de diferenciar-se da concorrência. A localização estratégica das usinas paulistas, conectadas pela mesma rede ferroviária que transportava no passado o café para o Porto de Santos, foi um ativo particularmente útil quando da greve dos caminhoneiros que tumultuou o país no ano passado. Pelos trilhos usados agora pelo GSM no maior “transporte interno de açúcar do Brasil”, segundo Venturelli, foram embarcados durante os dias da paralisação o etanol e o diesel que vinham da refinaria da Petrobras de Paulínia. O diesel também precisava chegar às máquinas do GSM, muito dependentes desse combustível, uma situação aparentemente pouco confortável – e certamente contraditória – para um produtor relevante de etanol. O cenário, contudo, tende a mudar, já que o grupo investe também na produção de biogás e biometano combustível. A base é o vinhoto, o resíduo mal cheiroso da destilação do caldo fermentado de cana. Álcool e açúcar são os produtos que enchem as burras do GSM, mas é o conhecimento específico da lavoura, segundo ele, a chave que abre porta grande. Para o executivo, “80% do sucesso de uma empresa sucroalcooleira vem da lavoura”. Assim, usar na plantação toda a inteligência disponível e aquela ainda por ser disponibilizada é essencial, muito mais, por exemplo, do que fazer investimentos em usinas. Um dos grandes diferenciais do GSM é justamente esse: o foco na plantação. Um diferencial e tanto, como ficou demonstrado quando “todo mundo, de Madonna e dos fundadores da Google à Odebrecht”, decidiu investir na produção de etanol, ainda no governo Lula. “Queriam trazer uma usina pré-montada da China. Ficou provado que montar usina é fácil, o difícil é compatibilizar com a lavoura. Achavam que os agricultores iam bater à porta com toda a cana de que precisavam. Isso não aconteceu.”

AGRO DESDE 1500

Em 1500, na famosa carta de “achamento do Brasil”, Pero Vaz de Caminha relata ao rei de Portugal, dom Manuel 1º, suas primeiras impressões in loco do território onde os “tugas” acabavam de aportar. Lá pelas tantas, o escriba dá ciência da grande extensão do lugar e também da fertilidade da terra de que iriam se assenhorar. Escreveu Caminha: “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira [esta terra] é graciosa que, querendo aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. Com a corrupção própria do tempo (e talvez do Brasil), a passagem foi transmutada para a conhecida “em se plantando tudo dá”. O Brasil, com efeito, viria a se tornar uma potência agrícola, e o agrobusiness vem contribuindo para melhorar os números do PIBinho nosso de cada ano. Em outubro de 2018, o setor foi responsável por 38,5% das exportações brasileiras, trazendo divisas de US$ 8,5 bilhões. Em geração de receita, soja, carne, celulose e açúcar, nessa ordem, são os principais produtos do segmento vendidos lá fora. A agricultura, âncora da balança comercial brasileira, como o setor gosta de dizer, produz commodities, produtos de baixo valor agregado. Como comparação, apenas uma empresa, a coreana Samsung, faturou, no terceiro trimestre de 2018, US$ 57,36 bilhões.

Fábio Venturelli, presidente do Grupo São Martinho || Créditos: João Leoci / Revista PODER

O MILHO VEM PRA CIMA

O etanol brasileiro, feito a partir do processamento da cana-de-açúcar, é mais competitivo do que o etanol de milho americano, seu grande concorrente mundial. Paradoxalmente, o milho pode ser mais doce – e produzir mais álcool – do que a cana, já que tem 4,5 vezes a concentração de sacarose desta última. Mas o mesmo hectare agriculturável produz muito mais cana do que milho, invertendo a vantagem. Apesar de a maior parte da indústria automobilística encarar a eletricidade como a próxima grande fonte energética, os investimentos em etanol não refluem. O Brasil, desde 2011, também já produz etanol de milho, e a tendência é vir a se tornar player também dessa commodity. No principal centro produtor de milho do país, o Mato Grosso do Sul, pululam novas usinas como a da FS Bioenergia, empresa americano-brasileira que estreou em 2018 estimando uma produção anual de 240 milhões de litros, com rápida capacidade de duplicação. Como comparação, o GSM produziu, na safra 2018/2019, 1,09 bilhão de litros de etanol de cana.