Por Maristela Mafei*
Ilustração David Nefussi
O que os homens de extrema direita têm em comum com as mentes brilhantes de pensadores liberais mais avançados? Há algo rasteiro e decepcionante que una homens de posições políticas conflitantes? E que permeia também os que se declaram defensores dos direitos humanos, intelectuais, políticos, artistas, mesmo aqueles que têm um pensamento político fortemente alinhado à esquerda? Sim, há. Podemos nomeá-lo de várias formas, mas talvez o mais apropriado seja o comportamento questionável que têm com as mulheres em muitas ocasiões ou, por que não dizer, de uma maneira geral.
O desrespeito às esposas e namoradas fica no topo da lista, que aumenta com relacionamentos paralelos, “gracinhas” e “cantadas” a outras mulheres e vista grossa aos atos de outros homens acusados de assédio. Parece que tudo lhes é permitido, que são dotados de uma “taradice” histórica, “frutos” de sua época, autoriza- dos a agir sem empatia com suas companheiras, que obviamente não foram consultadas, alinhadas, e são pegas, na maior parte das vezes, de surpresa, devastando a vida delas.
A história está cheia de homens considerados geniais com a biografia manchada pelo machismo. Mas o que dizer quando Bill Gates, pioneiro da computação pessoal, bilionário e filantropo, reputação intocável, uma vida publicamente devotada também à sua mulher, Melinda French Gates, desponta no noticiário como um desses homens? Decepção total. O comportamento do gênio colocou fim ao casamento de 27 anos com Melinda, em uma iniciativa toma- da por ela e anunciada por ambos em maio último.
Os sinais de rompimento começaram a vir há pouco mais de dois anos. No documentário O Código Bill Gates, lançado pela Netflix em 2019, Gates coloca Melinda em um pedestal em vários momentos. No terceiro e último episódio, ao ser perguntado sobre o que diria se morresse de repente, ele responde: “Obrigado, Melinda” e silencia.
A separação estava em andamento. Melinda consultou advogados cerca de dois anos antes de pedir o divórcio, afirmando que seu casamento estava “irremediavelmente rompido”, segundo o The Wall Street Journal. Um dos motivos do rompimento, apontado ao jornal por um ex-funcionário da Fundação Bill e Melinda Gates, teria sido a aproximação de Gates com Jeffrey Epstein, financista condenado por tráfico sexual de meninas menores de idade. Melinda não gostava dessa amizade, mas Gates continuou visitando e se hospedando na casa de Epstein em Manhattan.
Quando estava cotado a receber o Prêmio Nobel da Paz, em 2013, Bill Gates foi acompanhado por Epstein em uma visita ao então presidente do comitê do prêmio, Thorbjørn Jagland, segundo a revista norueguesa Dagens Næringsliv. Mas em setembro de 2019, após o suicídio de Epstein, Gates disse ao WS Jque o conhecia, mas não tinha relação de amizade.
Comportamento questionável no ambiente de trabalho foi outro motivo. Em 2018, Melinda não aprovou o modo como o marido lidou com uma denúncia de assédio sexual contra Michael Larson, seu antigo assessor financeiro. Bill Gates decidiu tratar do problema confidencialmente e manteve Larson no cargo. Melinda insistia numa investigação externa.
Complicando a situação, Gates teve um caso com uma engenheira de software da Microsoft por quase 20 anos. O conselho de administração da empresa considerou a relação inapropriada e contratou, no fim de 2019, um escritório de advocacia para investigar o episódio. Durante o processo, membros do conselho teriam decidido que Gates deveria ser afasta- do. Em março de 2020, ele renunciou ao cargo.
Resumindo, Bill Gates seguiu o padrão de alguém que faz o que quer, não importa se vai expor, magoar ou desestruturar a vida de outra pessoa, no caso, de sua mulher. Se tivessem combinado um casamento aberto, não estaríamos aqui falando sobre isso, até porque essa não é uma questão moral, mas de confiança. Pelo visto, não houve acerto prévio.
O que se vai combinar agora é a partilha de um patrimônio estimado em US$ 130 bilhões, um dos maiores do mundo. Os Gates não tinham acordo pré-nupcial, mas tudo indica que vinham negocian- do há algum tempo a divisão da fortuna, que inclui mansões, participações em empresas – além de uma fatia de US$ 25 bilhões da Microsoft –, investimentos, aviões e impressionantes 98 mil hectares de áreas próprias para a agricultura.
A grande diferença entre essa se- paração e outras semelhantes é o comportamento de Melinda. En- quanto o marido jogava para sua plateia particular, reproduzindo o estereótipo do conquistador, a cientista da computação e cogestora da Fundação Bill e Melinda Gates in- vestia em ações voltadas à equidade de gênero e condição feminina.
Em 2015, Melinda criou a Pivotal Ventures, uma empresa de investimento e incubação focada na igualdade de oportunidades para homens e mulheres, com o objetivo de pro- mover o progresso social nos Estados Unidos. E, em abril de 2019, lançou seu livro, O Momento de Voar, em que aborda o empoderamento feminino como meio de mudar o mundo. O que pressupõe mudar também, e principalmente, o comportamento masculino.
*Maristela Mafei é fundadora do Grupo Máquina PR, atual Máquina Cohn & Wolfe, e autora de Comunicação Corporativa: Gestão, Imagem e Posicionamento e Assessoria de Imprensa: Como se Relacionar com a Mídia (ambos da ed. Contexto)