Por Ana Elisa Meyer
Arquiteta de formação e responsável por consagradas obras de design mobiliário, Charlotte Perriand foi algumas vezes ofuscada, ao longo de sua produtiva carreira, por seus companheiros de trabalho, sobretudo pelo renomado Le Corbusier. Nascida em 1903, em Paris, filha de um alfaiate e uma modista, aos 17 anos Charlotte ingressou como bolsista na École de l’Union Centrale des Arts Décoratifs, onde estudou desenho de mobiliário por quatro anos. Para complementar a formação, teve aulas nos ateliês de pintura de Bernard Boulet de Montvel e de André Lhote, e frequentou os cursos de Maurice Dufrêne nas Galeries Lafayette e de Paul Follot no Le Bon Marché – duas grandes lojas de departamento francesas que instituíram seus próprios estúdios de design após a Primeira Guerra Mundial. Ali eram oferecidas atividades mais práticas do que nas escolas de perfil acadêmico. Em 1926, financiada por seus pais, apresentou a composição intitulada Coin de Salon no Salão Anual da Société des Artistes Décorateurs de Paris.
Sua ousadia ao mesclar na obra elementos de madeira e vidro foi vista como uma atitude pueril. Por outro lado, o trabalho agradou o comerciante de tecidos Percy Scholefield, um inglês amigo da família, que adquiriu a peça para mobiliar seu próprio apartamento. Mais tarde, enfrentando a opinião familiar contrária, Charlotte casou-se com Percy, 20 anos mais velho do que ela.
AFINIDADE COM LE CORBUSIER
Charlotte Perriand acreditava que a arquitetura deveria atender às necessidades humanas e desde o início projetou espaços interiores amplos, de plano aberto, buscando garantir que as mulheres não se sentissem presas ou excluídas do convívio em suas casas. Essas ideias estão bem representadas no projeto Bar sous le Toit, uma recriação de uma dependência de seu próprio apartamento, que ela apresentou no Salon d’Automne em 1927. A composição chamou a atenção do já então prestigiado arquiteto naturalizado francês Le Corbusier. Ele precisou rever sua opinião diante do desempenho excepcional da jovem que meses antes, ao buscar uma vaga em seu escritório, tinha sido rejeitada com um grosseiro “nós não bordamos almofadas aqui”. A obra Bar sous le Toit o obrigou a rever seu julgamento e convidar Charlotte para trabalhar em seu ateliê com o status de associada e como designer de mobiliário de seus projetos, que até então eram mobiliados com objetos que não eram de autoria de seu próprio ateliê
Nos anos que se seguiram, a estreita colaboração entre Charlotte, Corbusier e Pierre Jeanneret, primo do arquiteto, fez com que os espaços internos dos projetos se qualificassem e se tornassem ainda mais nitidamente funcionais. A combinação entre as claras funções do espaço interno e o mobiliário desenhado dentro da mesma concepção arquitetônica radicalizaram de forma ainda mais precisa o conceito da “casa como máquina de morar”. As peças, sempre marcadas com a designação LC Collection, passaram a refletir o caráter de seu tempo, tomando emprestadas as ideias da indústria automobilística e aeronáutica, resultando em objetos icônicos do século 20. A poltrona Grand Confort, em forma de cubo, a Chaise Longue Basculante e a cadeira giratória de couro entraram para a galeria dos móveis representativos do pensamento modernista.
Os dois tiveram uma relação profissional intensa, porém um tanto quanto eclipsada pela notoriedade de Corbusier. Em 1937, Charlotte deixou o ateliê do mestre e, numa reviravolta interessante, passou a observar de forma intensa a natureza em busca de inspiração. Focou seu trabalho em interesses sociais, em projetos igualitários e populares. No fundo o funcionalismo, no caso de Charlotte, sempre almejou a democratização da organização dos espaços domésticos.
CARREIRA SOLO
Comunista entusiasmada e influenciada pelos anos que passou no Japão, Charlotte voltou a França em 1940 determinada a projetar móveis de baixo custo para produção em massa. Revolucionou o ambiente doméstico por acreditar que uma casa deveria ser bela, mas funcionar bem. Propôs substituir o velho conceito de “decoração de interiores” por um outro, novo e baseado em uma organização da casa e da vida cotidiana que conjugasse função e beleza. Passou a substituir o cromo, material caro na época, por materiais tais como madeira e bambu, matérias-primas inovadoras e que havia aprendido a manusear no Japão. Fez uso de técnicas de construção manufaturada tendo em vista móveis e objetos arquitetônicos acessíveis e atraentes para a crescente presença da classe trabalhadora. Para ela, não havia método ou estilo prescrito: “Nem metal nem madeira, indústria nem artesanato devem dominar”, disse ela, porque “usamos cada um em seu lugar ideal”.
Adepta prematura da reciclagem, Charlotte Perriand sempre que possível utilizava os restos de madeira e pedras como esculturas a serem exibidas em uma casa. Outra convicção da arquiteta e designer era a de que obras de arte eram elementos essenciais e que deveriam fazer parte da vida cotidiana – outro importante aprendizado da cultura japonesa. Das suas colaborações com artistas, se destacou uma obra de Fernand Léger encomendada para um espaço criado em 1935, e impressões de desenhos de Pablo Picasso, que foram usadas em um projeto de habitação popular.
PROJETOS ARQUITETÔNICOS
Em uma época na qual era ainda incomum a presença feminina na arquitetura e no design, a carreira de Charlotte inclui trabalhos icônicos dos quais participou enquanto atuava no escritório de Le Corbusier. Da sua parceria com o arquiteto, vale ressaltar as residências modernistas Villa Savoye e a Villa Church, e a Cité de Refuge de l’Armée du Salut, que hoje abriga a Fundação Le Corbusier. Porém, realizou outros projetos igualmente representativos e elaborados exclusivamente por ela e, dentre eles, a extensa estação de esqui de Les Arcs, na França de 1967, onde ao dispor os edifícios acompanhando a topografia da montanha, organizou os blocos de apartamentos em uma série de terraços escalonados descendo a encosta, garantindo assim que as vistas da montanha fossem preservadas e usufruídas. Posteriormente, foi adicionada a esse conjunto de obras uma casa de chá japonesa encomendada pela Unesco em 1993.
Charlotte Perriand morreu em 1999, aos 96 anos, mas sua influência nos rumos do design, da arquitetura e da arte, sempre baseada nas suas ideias modernistas, permanece na maneira como vivemos ainda hoje, desde a presença de materiais como alumínio, aço e madeira, até sua crença de que bom design é para todos.
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A COZINHA FUNCIONAL
Com a necessidade de dispor diferentes produtos na cozinha, o armazenamento tornou-se uma das grandes preocupações para o design de interiores do pós-guerra. Charlotte Perriand foi pioneira nessa questão; desenhou e concebeu a “cozinha aberta” para os apartamentos da Unité d’Habitation, projeto de Le Corbusier edificado em Marselha entre 1947 e 1952 e que representou uma revolução na concepção da vida familiar. Para criar tal conceito, Charlotte basicamente dispôs os armários de forma a auxiliar a organização do próprio espaço arquitetônico. Para ela, a dona de casa precisava ganhar liberdade, se mover e alcançar os produtos e utensílios com facilidade. E com a nova cozinha, a família e os amigos penetravam o espaço do trabalho doméstico. Foi assim que nasceu a cozinha funcional como um espaço de convivência.