Por Anna Laura Moura
Referência em medicina geriátrica no país, Alexandre Kalache desenvolveu ainda na infância um olhar atencioso para os idosos. Formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com mestrado em sciences in social medicine e doutorado em epidemiologia, aos 75 anos Kalache é presidente do Centro Internacional de Longevidade e copresidente da Aliança Global de Centros Internacionais de Longevidade. Um currículo tão extenso exige fortes convicções, e isso ele tem de sobra. Dedicando sua carreira aos cuidados da população acima dos 60 anos, o médico afirma que um grande fator para alcançar a satisfação dentro da geriatria é já ter convivido de maneira íntima com idosos. Em tempos de pandemia, nunca se fez tão urgente a discussão sobre a falta de empatia para com essas pessoas, assim como de recursos públicos, e Kalache tem muito a dizer sobre essa problemática. A seguir, uma conversa sobre como a Covid-19 adoece não só o corpo, mas também a alma da população idosa.
PODER: Como surgiu o interesse em se especializar na saúde da população idosa?
ALEXANDRE KALACHE: Cresci em uma família grande e estava sempre passando as férias na casa dos meus avós. Quando se é criança, ou você brinca com seus primos ou ouve as histórias da avó, e eu fazia os dois. Então, sempre nutri uma proximidade enorme e, aos 15 anos, minha avó desenvolveu um câncer e adoeceu. Passei parte da adolescência ajudando minha mãe a cuidar dela. Por isso, minha sensibilidade com pessoas idosas surgiu muito antes da graduação.
PODER: Em que momento da sua carreira você percebeu que os idosos mereciam um olhar mais atento?
AK: Quando iniciei meus estudos sobre saúde pública em 1975, fui para a Inglaterra, pois naquele momento era o país que estava com recursos mais avançados relacionados a essa área. Lá, percebi que havia muitos idosos no local, mas pouco interesse pela geriatria. Ao longo do mestrado, na Universidade de Londres, fui fazendo estudos relacionados ao ramo. Um grupo de estudantes de medicina, após passar um mês atuando na geriatria, me disse que não sabia lidar com os idosos porque mal tiveram contato com os próprios avós. Isso me marcou e me fez pensar que para atingir a satisfação plena como médico geriatra é necessário ter tido contato íntimo com idosos, principalmente na família. É preciso sensibilidade. Durante meu doutorado com foco no envelhecimento, percebi que a população tem um olhar muito distorcido para o idoso. Envelhecer é uma conquista, mas não é assim que as pessoas enxergam.
PODER: Na sua opinião, por que existe a cultura de que o envelhecimento deve ser evitado a todo custo?
AK: As pessoas enxergam o ato de envelhecer como algo vergonhoso e que deve ser ocultado. Por causa desse pensamento, vemos indivíduos tornando-se vítimas de uma pressão estética que visa um padrão inalcançável. Botox, medicamentos, vícios e compulsões em academias e dietas mirabolantes, tudo para não aparentar que a velhice está chegando. É a busca pela juventude eterna. Precisamos ressignificar o ato de envelhecer, e entender que é um processo do que é ser humano. Devemos olhar para os fios brancos e para as rugas com orgulho por ter chegado aonde chegamos e não com vergonha por achar que esses sinais têm pouca beleza. É claro que uma alimentação saudável combinada com exercícios físicos cai bem, o que não pode é tornar-se refém de um corpo ou pele perfeitos. Eu não consigo dar uma volta no quarteirão correndo como conseguia aos 25, mas realizo minhas tarefas diárias, e isso já me satisfaz.
PODER: como vê a situação do idoso no Brasil?
AK: Nós estamos envelhecendo o tempo todo. Não é necessário ter mais de 60 anos para falarmos de envelhecimento, a cada segundo nos tornamos um pouco mais velhos. O problema é que o brasileiro envelhece mal, principalmente com doenças que poderiam ser evitadas se houvesse mais recursos na saúde pública. O idoso precisa de segurança e proteção, e o brasileiro tem a cultura de entender a população +60 como um fardo que não precisa existir, ou que não necessita de cuidados. Nós envelhecemos com esse pensamento, e é por isso que temos tanto medo da velhice. O idadismo, preconceito contra idosos, existe e está à espreita todos os dias.
PODER: Você acha que a chegada da Covid-19 escancarou esse preconceito?
AK: Não só escancarou como intensificou. No início da pandemia, tinha-se a ideia de que o coronavírus só infectava idosos – o que é mentira, e o que mais vimos foram comentários dizendo que “tudo bem”, pois já estavam perto de morrer. Esse pensamento só mostrou aquilo que quem é idoso ou estuda sobre, já sabe: a população +60 não é respeitada, tampouco valorizada. O governo federal, por sua vez, só fomentou esse pensamento ao negligenciar as medidas de segurança impostas pela OMS. Um país governado por representantes que não respeitam vidas idosas e que diminui o peso do luto só mostra que estamos em meio à desumanização da morte. A sensação de descaso diante de uma doença fatal também adoece.
PODER: De que forma a Covid-19 pode prejudicar a saúde mental da população +60?
AK: A pandemia não está matando apenas corpos, mas também a saúde mental de quem fica. A Covid-19 atingiu fatalmente jovens e adultos, e alguém se pergunta como fica a mente da mãe e do pai idosos com a perda desses filhos? E não só durante a pandemia, mas em outros contextos de violência. No caso de George Floyd, temos uma mulher, idosa e preta, sofrendo essa perda. Como está a saúde mental dessa mulher? A necropolítica, que atua não somente dentro do racismo e do machismo, mas também nesta crise sanitária atual, prejudica de forma exponencial essas pessoas. Essa desumanização da morte gera o luto patológico, ou seja, quando o sentimento é tão dolorido que transfere para o corpo.
PODER: Em meio à pandemia, quais atitudes interferem na vida de pessoas idosas?
AK: As medidas de segurança precisam ser respeitadas. Nossos governantes reproduzem falas que deturpam o uso da máscara, por exemplo. Dizem que ser obrigado a utilizá-la em estabelecimentos é minar a individualidade de cada ser humano, e isso é uma falácia. Há obrigações coletivas que envolvem a saúde pública, e por convivermos em sociedade precisamos respeitá-las. Não é sobre obrigar o uso, mas sobre estabelecermos debates maduros a respeito da importância desses cuidados.
PODER: Como tornar o processo de envelhecimento mais tranquilo e saudável?
AK: Minha mãe tem 102 anos e possui Alzheimer. Antigamente, por sua personalidade altiva, nós a apelidamos de baronesa. Hoje, vejo ela como uma rainha. O idoso, antes de mais nada, precisa de uma palavra de conforto, precisa saber que está sendo acolhido de alguma maneira. Nesse momento de pandemia, devemos refletir sobre nossas atitudes. A vida é, na verdade, uma maratona. Encontramos obstáculos e daremos alguns tropeços, mas no fim conseguimos levantar, dar um salto e encontrar outros caminhos. Somos reféns do imediatismo, queremos tudo muito rápido e atropelamos nossos processos corporais naturais. O envelhecimento é algo corporal e natural, então diminua o ritmo, respeite seus limites e seja carinhoso com quem estiver nesse processo há mais tempo.