Por Paulo Vieira
A política brasileira pode não ser a proverbial caixinha de surpresas do futebol, mas previsões sobre seu futuro podem ser tão furadas quanto as da finada Mãe Dinah. Poucos imaginavam que uma torrente radical de direita, com marcas claramente bolsonaristas, iria irromper das urnas em 2 de outubro, notadamente para os cargos legislativos. E não deu outra: o PL, sigla do profissional da política Valdemar Costa Neto que acolheu em 2021 Jair Bolsonaro, fez 99 deputados federais, a maior bancada da Câmara Federal, e cresceu em muitas assembleias legislativas estaduais. O currículo do deputado federal mais votado do país, Niko – las Ferreira, do PL, é de cartilha: negacionista, tendo se vacinado apenas para viajar ao exterior (e, em Londres, participado de uma manifestação contra a obrigatorie – dade da vacina), usa uma leitura enviesada da Bíblia para defender o armamentismo, cita frequente – mente as ameaças comunista e de venezuelização do Brasil, traz a lu – ta contra o aborto para o primeiro plano e acha que a política econô – mica do presidente só não colheu melhores frutos por conta do “fica em casa” promovido pelos governadores durante a pandemia.
No Senado, que renovou 1/3 de suas vagas, não apenas o PL, mas o bolsonarismo stricto sensu, fez barba, cabelo e bigode, com a eleição de ex-ministros como o astro – nauta Marcos Pontes, Damares Alves, Jorge Seif, Sergio Moro, Rogério Marinho e Tereza Cristina, além do vice-presidente, Hamilton Mourão. O PL também se tornou o partido dominante na Casa Alta, com 13 senadores, um a mais que o UB e quatro a mais que o ex – -aliado e hoje antagonista PT. Mas se dá para dizer claramente que a direita hipertrofiou-se, é arriscado afirmar, segundo cientistas políticos ouvidos pela PODER, que a ala mais radical desse campo irá dar as cartas no Congresso. Marco Aurélio Nogueira, professor da Unesp, divide a direita em três seções, a radical-bolsonarista, a “pragmática” e a “fisiológica”. Essa última deve aderir, como acontece desde o início dos tempos, ao governo de plantão, seja ele Bolsonaro ou Lula (esta reportagem foi finalizada cerca de dez dias antes do segundo turno). Por isso, segundo o professor, é importante não “simplificar”. Não há uma direita unívoca, com a pauta de costumes como bandeira e verdadeiro cavalo de batalha.
Damares Alves, Guilherme Boulos e Nikolas Ferreira, três “new kids” do Congresso, que pode ter no deputado Arthur Lira o mandachuva de 2023
Respondendo a uma provocação deste repórter, que vê uma dissonância entre essa pauta regressiva e as questões contemporâneas que terão de ser enfrentadas, até mesmo pelo Parlamento brasileiro, como o aquecimento global e a cooperação internacional, Nogueira crê, sim, numa dissonância, mas muito mais com as questões identitárias, tema que hoje, realça o professor, também incomoda estratos da esquerda. O crescimento do Psol nos legislativos brasileiros, que teve em Guilherme Boulos sua grande performance, aproximando-se do PSB e do PDT como principal força do campo progressista atrás do PT, dá-se bastante na esteira da defesa das minorias. Algumas candidaturas coletivas, como a da “bancada feminista” para a Assembleia Legislativa paulista, tiveram grande sucesso nas urnas. Também estreiam na Câmara Federal em 2023 duas deputadas trans, Erika Hilton (Psol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), a última antagonista de Nikolas na Câmara de Belo Horizonte. Já no Senado, segundo o professor, a força do bolsonarismo pode arregimentar um “cerco muito grande aos demais poderes da República”. “Se os novos eleitos resolverem peitar o Judiciário, vamos ter crise”, diz. São os senadores, como se sabe, que sabatinam ministros do STF, entre outras figuras públicas, e têm a prerrogativa exclusiva de tirar-lhes o mandato, pela via do impeachment.
CISÃO
O professor de ciência política da FGV-SP Marco Antônio Teixeira, também ouvido por PODER, lembra a cisão que sofreu o PSL, partido que Bolsonaro conseguiu levar para o primeiro time da política em 2019, entre suas alas mais e menos radicais. Ele acha que parlamentares mais veteranos que já integravam o PL podem vir de alguma forma a neutralizar os bolsonaristas novatos, ainda que esses tenham conquistado grande cacife eleitoral. O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, por exemplo, elegeu-se para seu primeiro mandato de deputado federal com 640 mil votos, a quarta melhor votação entre os candidatos paulistas. Teixeira também crê na força do Executivo para pautar as discussões na Câmara Federal, e no caso de um governo Bolsonaro, temas como escola sem partido e até uma possível rediscussão da criminalização do aborto nos casos hoje legalmente aceitos (estupro, risco de morte para a mãe, anencefalia) podem aparecer. Num governo Lula essa agenda deve ser refreada.
Em análise feita para a newsletter Meio, o cientista político Christian Lynch viu na figura do atual presidente da Câmara, Arthur Lira, o, digamos, deus ex-machina de 2023. Para Lynch, o tão falado semipresidencialismo finalmente vingará, mesmo com Lula eleito, e a Câmara, vitaminada com o orçamento secreto e as emendas impositivas – que prescindem de negociação com o Executivo –, deve mitigar, como nunca antes, o poder presidencial. “Em um momento histórico cuja hegemonia segue pertencendo à direita, ou à centro-direita, o semipresidencialismo oficial ou oficioso há de ser a fórmula que garantirá na prática a continuidade de uma política conservadora, ainda que os reacionários estejam fora do poder”, vaticina. O cientista político Miguel Lago não endossa o cenário, pois vê a insurgência de um presidente necessariamente forte, seja ele Lula ou Bolsonaro, depois de uma corrida eleitoral dominada de cabo a rabo por essas duas figuras, par que fez da “terceira via” uma peça de ficção. Para Lago, contudo, o custo da governabilidade com o novo Parlamento será maior. “Ficou mais caro. A Câmara Federal terá muito poder para tirar dinheiro do governo, ainda que seja insustentável governar um país com orçamento secreto. Acho que tanto Lula quanto Bolsonaro vão querer recuperar algum poder sobre o orçamento, senão nada conseguirão fazer.” Por acreditar que o fisiologismo segue a força predominante no Congresso, mesmo no agora tão bolsonarista PL, Lago não vê riscos imediatos para a governabilidade, até de um governo Lula. E quanto ao descompasso entre os parlamentares eleitos e os tais temas da agenda contemporânea, ele põe em dúvida se é mesmo essa agenda que a sociedade brasileira deseja. Afinal, ele exemplifica, 205 mil eleitores fluminenses deram votação arrebatadora para o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, com todo o seu desleixo no comando da campanha nacional de imunização contra a Covid-19. E na pandemia o povo brasileiro novamente deu mostras que acredita nas vacinas. Com tudo isso, Pazuello teve o dobro dos votos do ex-secretário municipal de Saúde do Rio Daniel Soranz, que também se elegeu deputado federal. “Soranz foi reconhecido por dar grande agilidade ao programa de imunização de uma das capitais que mais se destacaram nisso, o Rio”, completa.