VISÍVEIS, EM ALTO E BOM TOM

Por Natalia Mota e Sci-girls*

Esta época do ano nos lembra de uma reflexão importante: podemos gozar, acreditar que as ruas e nosso lar podem ser um lugar seguro, que a humanidade que carregamos no olhar pode e deve possibilitar um ângulo que caiba todo mundo, que nossa visibilidade supera a imagem controversa do feminino ou, quiçá, das estatísticas que denunciam as violações aos nossos direitos ou o resultado delas, que nossas múltiplas formas de dar vida, cor, movimento, encantamento e sentido são imensuráveis e, por isso mesmo, necessárias e desopilantes. Todos os dias precisamos lembrar da mesma mensagem tão clara e objetiva, aquela que brota do sonho e invade o desejo desperto, que move gerações de mulheres a continuarem debatendo o mesmo ponto, demonstrando, por meio de dados, mais do que exemplos, o quanto ainda precisamos mudar. “R-E-S-P-E-C-T” (RESPEITO), cantou a grande Aretha Franklin décadas atrás ao modificar e, por que não dizer, responder com vocais e alterações estruturais a versão original da música que carregava um sexismo já ultrajante, com superioridade moral ela ainda ecoa nítida na ira da injustiça reeditada a cada dia.

Somos humanas, cheias de potenciais desacreditados nas pequenas ações do dia a dia, todo dia. Na construção de conhecimento, percebemos que podemos fazer surgir a inovação. Vai do olhar particular, daquela perspectiva pouco privilegiada, da proximidade com o fenômeno, da curiosidade genuína. Brota a ideia, nasce o método, chega-se à realização. O sonho que empurra para fora da cama, no propósito de testar, verificar, adaptar, moldar e testar de novo, e então, voilà: descoberta realizada! Alegria e expectativa do ser curioso, tão igualmente frustradas: quem será o rosto estereotípico a comunicar o novo ao mundo?

No acúmulo de descobertas comunicadas por quem foi aceito, surge a contribuição de uma típica mulher na ciência. Assim como uma mãe em fome entrega seu bebê a quem puder alimentá-lo, após sequências de descréditos e negligências, gerações de mulheres aprenderam a esperar menos do seu trabalho. Os efeitos dessa invisibilidade são sentidos de diversas maneiras: do teto de vidro intransponível que, em diversas profissões, limita a ascensão de mulheres aos postos de lideranças aos labirintos de vidro do cotidiano, traduzidos em obstáculos associados à realidade de ser mulher. Em 2018, a Unesco observou uma redução gradativa da presença de mulheres ao longo da carreira acadêmica, sendo elas 55% do total de mestres no mundo, mas apenas 44% de doutoras e só 28,8% de pesquisadoras independentes.

Apesar de a representatividade das mulheres dentro da ciência ter aumentado nos últimos 60 anos, ainda há uma acentuada diferença de gênero no que diz respeito à produtividade, ao ganho de salário, ao reconhecimento e ao número de citações ao longo da carreira – pesquisas apontam que homens recebem cerca de 30% mais citações do que cientistas mulheres, apesar de terem aproximadamente a mesma taxa de publicação.

A invisibilidade do labirinto de vidro percebe-se quando esbarramos em desafios como maternar na condição competitiva de afirmação no campo científico, levando à redução de produtividade em períodos negligenciados por aqueles que definem as regras do jogo. Pior, a cobrança para uma mulher que necessita quebrar estereótipos e rótulos é ainda mais severa, precisando, em média, ser 2,5 vezes mais produtiva que seus pares homens para se estabelecer na carreira. Quanto mais elevada a posição, menor as chances de uma mulher ocupá-la. Se poucas chegam lá, provar que uma mulher pertence a esse lugar é uma quebra de expectativa poderosa.

A invisibilidade da mulher no mercado é amplificada pela construção coletiva midiática, que, quanto mais escolhe o padrão clichê de cientista, mais aprofunda a lacuna na representatividade pública de mulheres que comunicam suas próprias inovações. No Brasil, quando retratadas pelo senso comum, cabe a elas o lugar de uma cientista júnior, jovem e inexperiente (57% de representações pela mídia), com o protagonismo como cientista sênior em apenas 6,7% dos casos. Essa dinâmica é responsável pelo que chamamos de efeito Matilda, que se repete na trajetória de grandes mulheres, aquelas que desenvolvem suas inovações e testemunham seus créditos compartilhados com homens que as “endossam”, muitas vezes com sombras largas. Situação de uma sociedade que só reconhece a voz da inovação e da excelência em tons graves e masculinos.

Invisibiliza-se uma mulher quando não se escuta sua voz, quando se espera candura e se rejeita sua raiva, quando a protegemos de si mesma. Mulher, outras mulheres te enxergam e te escutam. Sejamos a luz umas das outras. Apesar da transparência que nos é imposta, brilhamos desde a antiguidade de Hipátia aos dias atuais. Somos muitas e seremos sempre, não pela promessa egoica de um reconhecimento tão raro, mas pela necessidade de construir um futuro mais justo, equânime, possível e viável.

**Assinam em nome das SCI-Girls (@scigirlsbr), grupo que trabalha pela inclusão das mulheres na ciência: Natália Bezerra Mota, Fernanda Palhano-Fontes, Sylvia Medeiros, Bruna Landeira, Denise Carvalho, Geissy Araújo, Fernanda Selingardi Matias, Lorenna Carvalho Saraiva, Bárbara Luzia Covatti Malcorra, Daiane Cristina Ferreira Golbert, Deyse de Souza Dantas, Angelis Falcão, Marina Ribeiro, Priscilla Kelly, Taíla Maciel de Alencar Fialho, Janaina Weissheimer e Dayane Araújo Dias