Por Sergio Leo
Fotos Lucas Seixas
Em meio ao grande pessimismo em relação aos rumos do Brasil, José Márcio Camargo é uma das vozes destoantes, tanto na avaliação das recentes medidas de privatização e reformas quanto no cenário para o futuro. Ele está convicto de que, se o combate à pandemia não sofrer algum revés inesperado, o cenário econômico trará “uma enorme sensação de bem-estar” à população, com efeito decisivo nas eleições de 2022.
Doutor em economia pelo MIT, professor da PUC-RJ, José Márcio trabalhou no governo José Sarney e ajudou Michel Temer em sua reforma da legislação trabalhista; foi assessor econômico de Henrique Meirelles em sua breve candidatura à Presidência e hoje é economista- -chefe da Genial Investimentos, de onde vê, na recuperação da pandemia, um possível efeito eleitoral semelhante ao que levou Fernando Henrique Cardoso à Presidência, com o Plano Real, em 1994.
Quem conseguir capitalizar o êxito das vacinas e outras medidas de controle da pandemia estará no segundo turno, provavelmente com o candidato líder das pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva, aposta o economista. A seguir, os principais trechos da conversa de José Márcio Camargo com a PODER realizada em outubro:
PODER: VOCÊ CONTINUA OTIMISTA EM RELAÇÃO À ECONOMIA?
JOSÉ MÁRCIO CAMARGO: O cenário de crescimento está relacionado com a pandemia. Tínhamos mais de 3 mil óbitos por dia, desde junho estamos com menos de 500 e continua uma trajetória de queda. Tive uma conversa longa com um técnico da Fiocruz e ele se mostrou bastante otimista em relação ao comportamento da pandemia nos próximos meses. Esse ponto é muito importante. Não estou projetando um comportamento da pandemia, nem os epidemiologistas famosos conseguiram fazer, não serei eu a tentar. Meu ponto é: se essa trajetória continuar, vamos fechar o ano com a questão da pandemia praticamente resolvida e, ao longo dos próximos meses, já vamos começar a ver uma mudança no bem-estar das pessoas, simplesmente porque vão poder sair de casa. Todos estão loucos para sair, conversar com amigos, ir ao bar da esquina, tomar cerveja, ir ao Maracanã, teatro, show. Isso vai significar um grande aumento na demanda por serviços, esse é um ponto fundamental.
PODER: NÃO SERIA PREMATURA ESSA SENSAÇÃO, COM NOVAS VARIANTES, O RISCO DE UMA NOVA ONDA?
JMC: Pode ser, não estou projetando nada sobre a pandemia. As pessoas estão loucas para voltar ao convívio social, a demanda por serviços vai crescer muito. O setor de serviços foi o que mais sofreu durante o isolamento, inclusive serviços ligados a famílias, que demandam muita mão de obra, inclusive informal. O garçom do bar da esquina, o vendedor ambulante, essas pessoas continuam fora da força de trabalho ou desempregadas, e a volta dos serviços será muito importante para reocupar esse grupo de trabalhadores e para diminuir um pouco o aumento de desigualdade que aconteceu ao longo do ano.
PODER: ISSO MUDA O CENÁRIO?
JMC: Vai significar uma sensação de bem-estar muito importante para a maior parte da população e acho que vai aparecer no último trimestre. Além da demanda de crescimento por serviços, estamos vendo, na parte de concessão de serviços de um modo geral, privatização, leilões e concessões do governo federal e governos estaduais, uma enorme demanda do setor privado no investimento.
PODER: POR EXEMPLO?
JMC: O governo federal privatizou a Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos) no Rio de Janeiro, a maior privatização desde a Telebras; privatizou 22 aeroportos, uma ferrovia e uma rodovia; o governo do Rio Grande do Sul reprivatizou a CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica), de transmissão, a Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento); o Mato Grosso acabou de assinar contrato de autorização da construção de uma ferrovia de 900 km. A sensação é que existe uma força do investimento privado na economia brasileira e acho que tem uma razão para isso: a grande quantidade de reformas microeconômicas desde 2016. Reforma trabalhista, liberalização da terceirização, reformas nos mercados de capitais e de crédito, novo marco regulatório de saneamento, novo marco regulatório de óleo e gás, nova lei de falências, uma quantidade enorme de reformas que agora está fazendo efeito.
PODER: AS PRESSÕES INFLACIONÁRIAS NÃO COMPROMETEM ESSE CENÁRIO POSITIVO?
JMC: A inflação está bastante forte, praticamente de dois dígitos, mas vem fundamentalmente, em grande parte, de choques exógenos: o aumento de preços de commodities metálicas e grãos devido ao crescimento da demanda na China, e aumento de petróleo. Isso não tem muito a ver com a política monetária, que o Banco Central está apertando, para controlar as expectativas de inflação, mas não tem efeito sobre esses preços.
PODER: BOLSONARO DISSE QUE A ALTA DA INFLAÇÃO É DEVIDO AO LOCKDOWN. O QUE ACHOU?
JMC: Concordo com a política do fique em casa, fundamental para preservar a vida das pessoas. Ao mesmo tempo parou-se o sistema produtivo. E, como os governos fizeram políticas fiscais muito agressivas, tanto os governos dos países desenvolvidos quanto os dos países emergentes, essa combinação gerou falta de insumos, disrupção do processo produtivo. A retomada da oferta demora mais que a da demanda. Não é uma crítica da política do fique em casa, mas é óbvio: isso também gera pressão sobre preços industriais, inflacionária, e isso sim o BC tem de controlar.
PODER: ENTÃO HÁ AMEAÇA INFLACIONÁRIA AO CRESCIMENTO?
JMC: Essa questão da inflação é importante, mas, com a desaceleração na China e a demanda por commodities vinda da Ásia diminuindo começam a acalmar os preços. O preço do minério de ferro nos últimos três meses despencou, o dos produtos agrícolas está começando uma trajetória de queda. Isso vai diminuir a pressão inflacionária, na minha avaliação, a partir do fim deste ano. A expectativa é ter uma estabilização da queda da renda real das pessoas, se é que a inflação vai estabilizar efetivamente.
PODER: QUAIS SÃO OS RISCOS?
JMC: O primeiro, de grande importância, é o grau de imprevisibilidade desse governo. Nunca se sabe o que vai acontecer: o presidente, as relações políticas, as negociações, tudo é supercomplicado. O que aconteceu na semana de 7 de setembro, por exemplo, gera um tumulto muito grande, incerteza, que gera desvalorização do real, e isso leva à inflação, que gera aumento de juros e menos crescimento. A expectativa é a de que essa imprevisibilidade diminua ao longo do tempo. Mas é verdade que não podemos dizer isso com segurança, já tem três anos de governo e a imprevisibilidade continua.
PODER: HÁ QUEM DEFENDA QUE, DO PONTO DE VISTA JURÍDICO, O PRECATÓRIO, UMA DESPESA NÃO VOLUNTÁRIA, ESTARIA FORA DO TETO. CONCORDA?
JMC: Quando digo que o teto vai ser obedecido, não digo que todos os gastos ficarão dentro dele. Como os precatórios: se tiver de tirar, fragiliza o teto de gastos, mas não o inviabiliza. Outra coisa é colocar o programa Auxílio Brasil fora, aí você destrói o teto de gastos.
PODER: POR QUÊ?
JMC: Porque o Auxílio Brasil é um gasto permanente, decisão do governo, e o teto existe exatamente para forçar o governo a definir prioridades naqueles gastos sobre os quais ele tem controle. Sobre precatórios, ele não tem controle. Se decidir tirar os precatórios, há uma explicação concreta, lógica. Mas se excluir o Auxílio Brasil estará realmente mudando o teto.
PODER: O MAIS IMPORTANTE É O EFEITO SOBRE AS EXPECTATIVAS DOS AGENTES ECONÔMICOS?
JMC: O teto é superimportante porque, com ele, se há aumento de receita, esse aumento tem de ser usado para diminuir dívida, o que está acontecendo. Estruturalmente, o Brasil vai bem do ponto de vista fiscal: o governo Bolsonaro começou com relação a gastos primários (sem computar gastos com a dívida pública) de 19,5% do PIB, e, se tudo correr como planejado, vai terminar o mandato com relação sobre o PIB de 17,5%. Isso nunca aconteceu desde a redemocratização, todos os governos começaram com a relação gastos primários sobre o PIB menor do que acabaram. Não fosse o teto, todo aumento de receitas se tornaria aumento de gastos. Com o teto, tudo está sendo usado para reduzir a dívida em relação ao PIB, fundamental para reduzir o prêmio de risco do Brasil.
PODER: EMBORA TENHA HAVIDO MELHORIA NA FORMAÇÃO BRUTA DE CAPITAL FIXO, QUE MEDE INVESTIMENTO, A BASE DE COMPARAÇÃO É FRACA, E HOUVE UMA FORTE QUEDA RECENTEMENTE. NÃO ESTÁ MUITO BAIXO O INVESTIMENTO EM RELAÇÃO AO PIB E OS INDICADORES RECENTES NÃO DESENCORAJAM O OTIMISMO?
JMC: Sempre há enorme grau de incerteza quando se trata de investimento. Mas essa questão das concessões e privatizações é muito importante. Há uma demanda muito grande pelas concessões do governo. Na concessão de serviços de água e esgoto no Amapá houve ágio de 1,8 mil por cento. A privatização da CEEE teve ágio de 80%. A de aeroportos no interior de São Paulo teve enorme ágio, os sintomas são positivos. Todas essas concessões exigem um enorme investimento. Na privatização da Cedae pagaram uma outorga de R$ 23 bilhões e se comprometeram a investir R$ 50 bilhões em dez anos.
PODER: VOCÊ ESPERA, ENTÃO, UM ANO PROMISSOR DE RECUPERAÇÃO EM 2022?
JMC: Acho 2022 um pouco mais complicado por causa do risco político: teremos eleição, ninguém sabe muito bem como será. Se meu cenário da pandemia estiver correto, a mudança de humor da população vai ser muito importante para definir o cenário político. Quem conseguir capitalizar essa mudança de humor, e não sei quem vai ser, pode ser o [João]Doria, o [Eduardo] Leite, [Luiz Henrique] Mandetta ou até Bolsonaro, irá para o segundo turno. Nós temos feito pesquisa e, aparentemente, é a situação da economia que vai dominar a discussão eleitoral. Como no Plano Real: no começo de 1994 Lula tinha 70% dos votos segundo as pesquisas; quando foi em agosto, ele já estava com bem menos e, em novembro, perdeu no primeiro turno.
PODER: O RESULTADO DA VACINAÇÃO SOBRE A ECONOMIA PODE EQUIVALER AO EFEITO DO PLANO REAL?
JMC: Por que não? Pode ser até mais importante ainda. Não estou falando que vai, mas será uma mudança na sensação de bem-estar impressionante, estou convicto.