POR PAULO VIEIRA
ILUSTRAÇÃO DAVID NEFUSSI
O dia 12 de agosto foi simbólico da campanha presidencial que, dois meses e meio depois, culminou com a vitória eleitoral de Lula sobre Jair Bolsonaro, o primeiro incumbente na redemocratização a não se reeleger. Naquele dia, o deputado federal mineiro André Janones (Avante), que havia retirado sua própria candidatura presidencial para apoiar o petista, acordou com a macaca. Dono de uma popularidade digital que o coloca no pódio dos parlamentares em número de seguidores e engajamento nas redes sociais – tem 8 milhões de fãs no Facebook, sua rede mais potente –, ele estrilou contra os novos companheiros de centro-esquerda, repetindo, a seu modo, o papo reto de Mano Brown no comício carioca de Fernando Haddad em 2018, quando o rapper disse para um público de fervorosos petistas que o partido havia perdido sua conexão com a periferia. Escreveu Janones, no Twitter: “Essas eleições serão decididas nas cidades interioranas, de 2, 3, 20 mil habitantes, totalmente fora do radar da esquerda, mas onde o bolsonarismo tem livre acesso. Por lá, o Face e o WhatsApp não são uma rede, mas um ‘jornal’.
O que sai por lá vira verdade absoluta, instantaneamente. E o bolsonarismo sabe bem disso. Esses que estão ali, esquecidos pela arrogância da nossa elite intelectual, por alguns setores da esquerda e pelos tuiteiros adoradores de Chico e Caetano”. O novo “chão de fábrica”, como Janones chamou as redes sociais – em especial o Facebook –, era tido como fortaleza inexpugnável de Bolsonaro, e mesmo o coordenador de comunicação da campanha de Lula, o prefeito petista de Araraquara (SP), Edinho Silva, achava que a batalha ali já estava perdida: restava a Janones, que aderiu à campanha digital de Lula, apenas lutar para reduzir danos. Pois Janones foi muito além, disse a Edinho que faria Lula “atropelar” e, “usando as armas do inimigo”, como o deputado gosta de dizer, emparedou nas redes sociais a campanha bolsonarista. Janones dominou por muitos dias a pauta e tornou temas como canibalismo, maçonaria, pedofilia e perda de poder aquisitivo do salário mínimo dores de cabeça constantes para Bolsonaro, que teve de atuar na defensiva, tentando se livrar de acusações e suposições incômodas, sem poder repetir o que fez na campanha vitoriosa de 2018: jogar sem marcação, a espalhar desinformação e a destruir reputações, obrigando o adversário a passar dias e dias tentando se livrar de acusações infundadas. O kit gay e a mamadeira de piroca, que tantos estragos fizeram na campanha de Haddad, chegaram mesmo a reaparecer em 2022, mas as ligações de Lula com o PCC e as igrejas que ele supostamente iria fechar caso o petista ganhasse as eleições, para ficar em apenas duas “armas” bolsonaristas, tiveram seu efeito anulado pelas pancadas vindas de Janones. “Janones foi um ator fundamental na estratégia de defesa de Lula.
Seu papel foi dar trabalho para o adversário, deixá-lo acuado e temeroso. Deu tão certo que até o ministro das Comunicações, Fábio Faria, tentou trazê-lo para sua órbita, desviando-o de Bolsonaro. Janones foi para Lula, de certa forma, o que Carlos Bolsonaro é para o pai, o comandante da tropa digital. Ocupou um vácuo, já que Lula não tinha essa figura. Ele intimidou o adversário e animou a tropa lulista”, disse a PODER o cientista político Felipe Nunes, fundador do instituto de pesquisa Quaest.
‘‘Janones foi para Lula o que Carlos Bolsonaro é para o pai, o comandante da tropa digital. Ocupou um vácuo, já que Lula não tinha essa figura” Felipe Nunes, Quaest
Não é possível mensurar, como profissionais de marketing gostam de dizer que fazem, o valor de um vídeo de Janones durante a campanha de segundo turno. Mas dá para afirmar que alguns deles ajudaram a carrear uma quantidade industrial de votos para Lula – ou para retirá-los de Bolsonaro, o que no segundo turno dava na mesma. O deputado, usando com facilidade a linguagem das redes, se filmava, por exemplo, na frente de uma conhecida igreja evangélica de São Paulo, o Templo de Salomão, para falar de uma possível visita de Bolsonaro a uma sede maçom, algo proscrito por boa parte dos evangélicos; ou se postava na frente do prédio do Ministério da Economia e, alegando ter notícia urgente, recém-apurada, informava, sem usar o termo “desindexação” falado pelo ministro Paulo Guedes, que as aposentadorias e o salário mínimo deveriam perder valor a partir de 2023, já que não teriam mais seus reajustes atrelados à inflação. “A habilidade de Janones foi entender a linguagem das redes sociais e despertar curiosidade com assuntos que ele envelopava em formato de conspiração. Ele pegou a metodologia bolsonarista de produção de informação, de saber conferir uma urgência aos assuntos, e soube replicá-la. Essa foi uma das grandes novidades de 2022”, disse a PODER Alexandre Pacheco, coordenador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da Faculdade de Direito da FGV/SP.
Numa entrevista recente à newsletter Meio (assoberbado com os compromissos do governo de transição, Janones recusou-se a dar entrevista a PODER, apesar dos insistentes pedidos feitos a seu gabinete), o deputado de 38 anos explicou que sua habilidade com as redes sociais “não tem nada de genial” e é comum a pessoas de sua geração. “Não lembro do mundo antes das redes sociais”, disse. Ele também usou várias vezes a expressão “nojinho” para se referir ao sentimento de extratos da esquerda quando, por exemplo, replica memes. E defendeu que é essa a linguagem que o camelô (que chamou de “vendedor de bugigangas”) entende e com a qual pode “formar mais opinião do que um artista”. “Nossa turma [o campo progressista] acha engraçado, pensa que é troll, mas meme é realidade, não tem como negar a existência disso.”
Mineiro de Ituitaba, uma cidade de 100 mil habitantes do bolsonarista Triângulo Mineiro, Janones, como Bolsonaro, se projetou nacionalmente com a paralisação dos caminhoneiros de 2018, mas disse ter-se afastado do movimento quando este descambou para a ruptura institucional. Eleito naquele ano para seu primeiro mandato com 178 mil votos – o terceiro federal mais votado de Minas –, em 2022 somou mais 60 mil sufrágios, ficando atrás no estado apenas do exvereador de Belo Horizonte e bolsonarista à Carla Zambelli Nikolas Ferreira. Cobrador de ônibus e escrevente antes de se tornar advogado, Janones é também evangélico, o que lhe deu um lugar de fala fundamental na campanha de Lula, que viu Bolsonaro abrir grande frente nesse público. Em 2021, ele tentou medir forças contra Arthur Lira e Baleia Rossi na disputa pela presidência da Câmara, casa que disse estar “de costas para o povo brasileiro”. Em seu discurso, comprometeu-se a pautar matérias para a prorrogação do auxílio emergencial, aprovado no começo da pandemia, em 2020, e que Bolsonaro quis interromper no ano seguinte. Não sensibilizou os colegas: teve apenas três votos – ficou à frente apenas de Kim Kataguiri e General Peternelli. Um dos projetos de lei que apresentou na Câmara proibia o aumento de preço dos produtos da cesta básica durante a pandemia.
Janones é considerado por Otávio Antunes, marqueteiro do futuro ministro da Fazenda Fernando Haddad, como a “maior autoridade do campo progressista no Facebook”, opinião compartilhada por Alexandre Pacheco, da FGV, que acha que é essencial que o Legislativo comece a discutir uma regulação para a desinformação, e que, para isso, Janones teria poderosa contribuição. Antunes disse a PODER que os números de engajamento do deputado durante a campanha de segundo turno eram impressionantes – mil compartilhamentos por minuto, por exemplo, de uma postagem sobre a manutenção do auxílio emergencial. Otávio não acha que o “chão de fábrica” será substituído pelas redes, mas que, de fato, os partidos progressistas “esqueceram-se um pouquinho” de se conectar com as pessoas mais pobres. Além de achar o deputado um “gigante” nas redes sociais, Antunes elogia a figura “muito gentil, carinhosa e afetiva” de Janones, mesmo tendo convivido com ele em jornadas intensas e insanas, como é comum em campanhas. “É um baita sujeito, de sorriso largo. Pelo que faz, até achei que fosse fisicamente maior.”
FORA DE CONTEXTO
André Janones costuma dizer que não espalha fake news, mas várias de suas postagens retiradas do ar pelo TSE a pedido da equipe de Jair Bolsonaro tangenciam o que a lei considera “fato gravemente descontextualizado”. Alexandre Pacheco, da FGV, usa como exemplo a alusão ao canibalismo do presidente a partir de uma fala de Bolsonaro de que, se tivesse de visitar um povo indígena, e este praticas- se canibalismo, também experimentaria a prática. “Não dá para dizer, com aquele depoimento, que Bolsonaro adota prática canibal. O que Janones viu ali era o presidente jo- gando conversa fora, como sempre faz, mas o deputado foi muito inteligente para construir um discurso fácil de ser entendido e replicado”, diz o acadêmico. Pacheco diz que um dos grandes trunfos de Janones na campanha foi justamente chamar atenção para conteúdos que ele, por decisão do TSE, não poderia publicar. Nessas horas, o de- putado fazia uma mise-en-scène em vídeo criando ainda mais curiosidade para o tema. Mas o comunicador não é total unanimidade. Lula Guimarães, marqueteiro de Soraya Thronicke em 2022 e de Geraldo Alckmin em 2018, considera que o parlamentar ultrapassa muitas vezes os limites éticos e nem sempre acerta. “No fim da campanha ele tentou fazer um suspense com o conteúdo do celular do [exministro Gustavo] Bebianno, e não havia nada ali.”