Revista Poder

S.O.S. SAÚDE

Para o infectologista Esper Kallás, mudanças climáticas e pessoas imunodeprimidas aumentam as condições para o aparecimento de novas epidemias ou até mesmo de pandemias como a da Covid-19

POR VALÉRIA FRANÇA
FOTOS PAULO FREITAS

As chances para que novas epidemias apareçam aumentam na proporção em que as mudanças climáticas avançam. Esse entendimento, que começa a sair dos limites das universidades, levou o infectologista Esper Georges Kallás, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), a organizar uma palestra sobre o assunto para profissionais da área da saúde. No evento, que aconteceu em agosto, o pesquisador Tristan Mackenzie, da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, falou sobre os impactos do meio ambiente nas pandemias no mundo. Publicado recentemente na Nature Climate Change, o estudo indica que o aumento das emissões de CO2 , a diminuição das áreas verdes e o aquecimento global elevam em 58% as chances de os vírus se espalharem e provocarem epidemias.

O meio ambiente é um dos fatores que contribuem para os riscos de um novo episódio globalizado como o da Covid-19. Durante entrevista à revista PODER, Kallás apontou o aumento da longevidade como outro fator de risco. “A medicina vem prolongando a vida das pessoas. Temos um número cada vez maior de doentes crônicos que, apesar de viverem normalmente, são mais vulneráveis – caso de diabéticos ou de pacientes com câncer que estão fazendo quimioterapia”, diz Kallás. O problema é que essas pessoas estão mais sujeitas ao ataque de novos vírus, pois se contaminam com mais facilidade do que aquelas sem comorbidades. Para o médico, depois da Covid, a população em geral percebeu que epidemia não é ficção. “Agora, falta o Governo se conscientizar da necessidade de uma política pública de incentivo às pesquisas e ao desenvolvimento científico.” Segundo ele, o Brasil precisa ter infraestrutura e independência para reagir a novos surtos e produzir as próprias vacinas. “Ficou comprovado que a coordenação global da saúde não conseguiu fazer uma distribuição igualitária de imunizantes.” Aqui, a entrevista completa com o médico.

PODER: ESTAMOS NA ERA DAS PANDEMIAS, COMO DIZEM ALGUNS ESPECIALISTAS?

ESPER KALLÁS: É uma teoria que ainda não foi comprovada, mas é verdade que temos uma série de doenças reemergentes e novos saltos nas últimas décadas: ebola (2014), zika (2015), febre amarela (2016, 2017, 2018), Covid-19 (2020), gripe H3N2 e varíola dos macacos (as duas últimas neste ano). Mesmo assim nem todos os pesquisadores concordam que esses eventos sejam suficientes para taxar a época atual como a era da pandemias.

PODER: MAS EXISTE PREVISÃO DE UMA NOVA EPIDEMIA?

EK: Há vários fatores que agravam a probabilidade de uma outra epidemia. Na verdade, não é uma questão de se vai acontecer, mas de quando vai acontecer. O importante é ter ferramentas para nos prepararmos.

PODER: QUAIS SÃO ESSAS FERRAMENTAS?

EK: Temos ferramentas de detecção precoce, mas precisamos de outras, como a capacidade de identificar cada vez mais rápido os locais em que existem as maiores concentrações de germes. Em geral, os novos vírus, que são originariamente comuns a certas espécies de animas, acabam infectando humanos. Eles fazem um salto, como se diz na ciência, e causam doenças como a febre hemorrágica provocada pelo vírus ebola, que foi transmitido ao homem pelos morcegos, na África. Também foi um morcego que transmitiu a Covid-19, na China. Em agosto, mais um novo vírus foi detectado pelos chineses, de acordo com o Centro de Controle de Doenças de Taiwan: o langya, que é transmitido pelos musaranhos (pequenos mamíferos que se alimentam de insetos, mas, ao contrário do esperado, não causou sintomas graves nem provocou a morte de ninguém até agora). É importante ter mapeadas as regiões do planeta com maior ou menor origem para saltos de vírus. Por exemplo, o zika vírus estava circulando na Polinésia antes de chegar aqui.

PODER: HÁ MAIS VÍRUS OU ESTAMOS MAIS SUSCETÍVEIS A ELES?

EK: Há um trabalho recente, publicado na revista Nature Climate Change, que mostra diversos fatores que aumentam as chances desses saltos. Estamos falando do aumento da temperatura global, da diminuição das áreas verdes, da mudança de comportamento dos animais na vida selvagem e da aproximação de homens em regiões que eram selvagens.

PODER: O QUE EXPLICA ESSES SALTOS?

EK: A medicina tem prolongado a vida das pessoas. Há cada vez mais doentes crônicos que, apesar de viverem normalmente, têm a saúde frágil – caso dos diabéticos. O mesmo vale para pacientes com câncer que fazem quimioterapia. Eles eram raridade no século 20 – hoje, não. Neste século houve também proliferação de germes. As pessoas mais vulneráveis são uma porta de entrada para novos vírus e funcionam como uma espécie de ponte, contaminando quem é saudável.

PODER: A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS) ACOMPANHA A PROLIFERAÇÃO E O APARECIMENTO DE NOVOS VÍRUS, CERTO?

EK: Sim. Existe sempre o risco de um salto acontecer em algum momento e a OMS se mantém vigilante. Há verificações constantes dos vírus da gripe e de suas plataformas, justamente para que se tenha rápida capacidade de produção de vacinas. Outro dia, fizemos um estudo na USP em que avaliamos uma vacina para gripe aviária para que ela esteja pronta, caso haja algum problema desse tipo. Depois da Covid, era esperado que os investimentos nesse sentido aumentassem. Os cientistas sabiam que uma pandemia estava a caminho, mas todos achavam que ela iria ser causada por um vírus da gripe. A surpresa foi ter sido causada pelo novo coronavírus (vírus causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave, Sars).

PODER: FOI ISSO QUE PEGOU O SISTEMA DE SAÚDE DE CALÇAS CURTAS?

EK: Nunca estivemos de calças compridas. Não estamos prontos para uma nova pandemia. Surpreendentemente, o Estado de São Paulo conseguiu absorver os casos graves nos hospitais, mesmo atingindo todos os limites, como atender em locais sem estrutura adequada. Não tivemos colapso de UTIs em São Paulo, como em outros estados do país, caso de Manaus. O fechamento (o lockdown) aqui prolongou e achatou a primeira onda. Foi o que preveniu o colapso. Quando olhamos para trás, com mais frieza, esses números e dados mostram a eficiência das medidas.

PODER: COMO AUMENTAR A EFICIÊNCIA NO ENFRENTAMENTO A UMA NOVA PANDEMIA?

EK: Temos que desenvolver capacidade técnica e biotecnológica com respostas rápidas, métodos de prevenção e tratamento. Quanto maior a população, mais chances desses vírus se espalharem. Na época em que meu pai saiu do Oriente Médio, ele demorou 20 dias para chegar no Brasil. Hoje, você sai de qualquer lugar do mundo e chega em qualquer outro lugar do planeta em no máximo 24 horas. Isso significa que a mobilidade e a velocidade são muito maiores, o que contribui para aumentar a capacidade do vírus se espalhar. Só em mamíferos existem 40 mil vírus diferentes que possuem potencial para fazer algum salto para humanos.

 

“Vários fatores apontam para o aparecimento de uma nova epidemia. A questão não é se vai acontecer, mas quando vai acontecer”

 

PODER: O SISTEMA DE SAÚDE PODERIA SE PREPARAR MELHOR PARA ENFRENTAR NOVOS SURTOS?

EK: Para isso teríamos que trabalhar com uma capacidade ociosa de mão de obra, que pudesse ser treinada e acionada em caso de pandemia. A dificuldade está em calcular esse contingente. O colapso da saúde não foi um problema apenas no Brasil. Mesmo lugares com estrutura mais consistente tiveram dificuldade de dar conta da quantidade de doentes graves na fase inicial da pandemia. Na Europa, por exemplo, a França conseguiu, mas a Itália, não.

PODER: QUAL É A SAÍDA?

EK: A globalização está passando por um período de revisão. A distribuição das vacinas foi desigual. A coordenação mundial da saúde não foi eficiente nesse sentido. Ficou provado que cada país deve ter capacidade reativa de produção local para não ficar para trás. O Brasil não tem vacina para o vírus que provoca a varíola dos macacos, por exemplo, enquanto a França já está vacinando a população. Um colega infectologista desembarcou em Paris e tomou a vacina no dia seguinte. O mesmo aconteceu com outro colega que foi para o Canadá. O Brasil tem cerca de 4 mil casos confirmados (é o terceiro país com a maior taxa de infectados) e depende da importação de vacinas, que ainda não chegaram. Temos que ter nossa infraestrutura e independência para reagir.

PODER: MAS É PRECISO CONSIDERAR QUE O BRASIL TEVE TECNOLOGIA PARA PRODUZIR VACINAS DA COVID, CERTO?

EK: É verdade, mas a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Butantan são estruturas que podem render mais para o Brasil. Embora a gente saiba que houve reação e mérito enorme das duas entidades, não podemos deixar de observar que as duas vacinas da Covid não foram feitas no país. O Butantan fabricou aqui a vacina chinesa CoronaVac, do laboratório Sinovac, e a Fiocruz, a da inglesa Oxford, que foi incorporada pela AstraZeneca. O Brasil chegou a anunciar o desenvolvimento de cinco vacinas, mas elas ainda não estão prontas. Isso mostra que ainda precisamos melhorar. A pandemia fez com que o mundo acelerasse seus processos. Uma vacina, que demorava uma década para ser desenvolvida, foi fabricada em 11 meses. A tecnologia está posta e a forma como a utilizamos foi muito instrutiva. Um grupo da OMS começou a discutir sobre uma nova meta, a de desenvolver uma vacina em 100 dias. Metas são estabelecidas para colocar um desafio e precisamos começar a trabalhar com essa visão.

PODER: O QUE FALTA AO BRASIL?

EK: Falta apoio para trabalharmos com essa meta. Essa é uma decisão da ciência, mas também uma decisão política para que venham os devidos investimentos para termos respostas mais rápidas. É preciso fortalecer nossa ciência – universidades e núcleos de pesquisa – e fomentar empresas de biotecnologia, que possuem muita dificuldade de prosperar no Brasil. Precisamos cultivar a filosofia de empresas de tecnologia.

PODER: QUAIS OS PAÍSES QUE ESTÃO MAIS AVANÇADOS NESSE PONTO?

EK: Nos Estados Unidos a pesquisa biomédica é bancada principalmente (70%) pelo governo americano, que entende esse investimento como estratégico. Outro lugar que entendeu isso foi a China, tanto que o número de universidades explodiu no país nos últimos anos. Aqui no Brasil tudo aconteceu na base do susto durante a pandemia. Agora é preciso fazer um planejamento a longo prazo para o estímulo de novas tecnologias, que pode vir tanto do setor público como do privado. n

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