POR PATRICIA VANZOLINI
A advocacia tem uma relação quase simbiótica com o Estado Democrático de Direito. Em contraponto aos regimes ditatoriais e totalitários, que são capazes de policiar, investigar, julgar e punir seus cidadãos, somente a democracia permite a existência dos direitos do devido processo legal, ampla defesa e presunção de inocência.
Onde o autoritarismo prevalece, o livre exercício da advocacia se compromete por restrições, por vezes declaradas e, mais comum, disfarçadas sob discursos de “interesse público” ou necessidades de burocracias judiciárias. Se não podemos exercer plenamente nossas funções em determinado lugar, é um atestado de que nesse lugar não há democracia. Assim, a livre atuação da advocacia está no centro daquilo que diferencia o funcionamento da Justiça como espaço de garantia da continuidade democrática.
A história recente do Brasil pode exemplificar: por meio da ditadura militar brasileira, que perdurou entre 1964 e 1985, advogados e juristas foram perseguidos, tendo seus direitos à privacidade violados com quebras de sigilo telefônico, interceptação de correspondências e, em casos mais extremos, prisão.
A Ordem dos Advogados do Brasil desempenhou papel fundamental na luta pela redemocratização do país, e esse posicionamento teve seu preço. A entidade foi alvo de ataques, incluindo um atentado na sede do Conselho Federal em 1980, que atingiu de maneira fatal a secretária Lyda Monteiro da Silva.
A caminhada até a conquista da Constituição de 1988 foi dura, mas deu início ao maior e mais estável ciclo democrático de nossa história. Há mais de três décadas nossa população pode se expressar e debater suas visões de mundo, se organizar politicamente e participar de eleições limpas, com transições pacíficas entre os governos.
Com essa estabilidade institucional, o país cresceu e melhorou uma série de indicadores. É fato que ainda enfrentamos graves mazelas sociais, além de ocuparmos um lugar dentre as nações mais desiguais do mundo, mas não há dúvida de que o Brasil de hoje é muito diferente (em termos de desenvolvimento e de relevância global) quando comparado àquele que promulgou a Constituição em 1988.
No entanto, também é fato que essas conquistas estão sob severa contestação e, portanto, sob ameaça. Após mais de três décadas de estabilidade, o país se aproxima de uma eleição majoritária sob o manto da incerteza, na companhia de ataques infundados ao nosso sistema eleitoral.
De maneira leviana, a confiabilidade das urnas eletrônicas está sendo colocada em questão, apesar de todos os esforços da Justiça Eleitoral em reiterar a segurança do sistema, testado à exaustão por especialistas e legitimado por representantes de todos os partidos políticos ao longo de dezenas de pleitos.
Essa é só uma representação dos ataques que colocam o nosso país em uma situação de esgarçamento de suas instituições e de estreitamento do espaço do debate público. O que está em jogo é a continuidade da nossa democracia, no que se inclui o dever de aperfeiçoá-la e adaptá-la às demandas da sociedade contemporânea. Porém, sem retrocessos. O direito ao voto, o respeito ao processo eleitoral, a alternância de governos, o pluralismo político, a liberdade de expressão e de imprensa e as garantias individuais inscritas na Constituição são valores inegociáveis.
É por isso que consideramos necessário reiterar o compromisso da Ordem dos Advogados com a defesa do regime democrático instituído pela Carta de 1988. O lançamento da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, manifesto suprapartidário e espontâneo, assinado por centenas de milhares de pessoas, é a síntese desse compromisso público.
É simbólico que esse manifesto tenha nascido no centro de ensino de Direito mais antigo do país. O que se vê na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mais uma vez, é o senso de responsabilidade do campo jurídico com a defesa da Constituição de 1988, a maior conquista do povo brasileiro em sua história recente.
Por todos os operadores do Direito que trabalham pela construção do regime democrático no Brasil, desde o dia a dia nos pequenos fóruns, comarcas, delegacias de polícia, repartições públicas e tribunais, passando por parlamentos, instituições e por toda arena pública em que a democracia com Direitos é sucessivamente garantida, a OAB de São Paulo reafirma que não irá aceitar retrocessos.
Patricia Vanzolini é presidente da seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil