Revista Poder

Poderosas Cacicas

De alguns anos para cá, mulheres indígenas vêm conquistando a mais alta liderança de suas aldeias, lutando pelos direitos de seus povos e buscando espaço no Congresso Nacional

Por Carla Julien Stagni

Meu nome em guarani é Kerexu Takuá. Tenho 39 anos, sou mãe de três filhos e tenho dois netos. Sou militante de movimentos sociais de luta por moradia, direitos humanos e das mulheres desde meus 14 anos.” É assim, com todo esse empoderamento, que Alice Guarani se apresenta. Ela representa um grupo que vem conquistando cada vez mais espaço, o das cacicas. O tempo em que só homens ocupavam a posição mais alta entre os povos indígenas ficou para trás. As mulheres estão aí para provar que podem, sim, estar à frente de suas aldeias. “Fui escolhida pelos meus ‘parentes’, que é como chamamos os membros da nossa comunidade. Cada aldeia tem sua maneira de eleger suas lideranças. Só posso falar do meu lugar de indígena guarani periférica urbana e da responsabilidade que tenho estando nesse espaço que sempre foi ocupado por homens. Somos poucas cacicas aqui no Rio Grande do Sul. E de comunidade urbana sou a primeira”, conta Alice, líder do povo guarani e estudante de pedagogia.

“A invisibilidade e a desigualdade social, assim como a falta de políticas públicas, existem desde que as caravelas aqui atracaram”
Alice Guarani,
cacica urbana do povo guarani, do Rio Grande do Sul

A quase 4 mil quilômetros de distância, no extremo norte do país, outra cacica se destaca na luta pelos direitos de seu povo. Telma é a primeira mulher eleita tuxaua (chefe) pela população taurepangue. Também é uma das fundadoras do Parlaíndio Brasil, primeiro parlamento do movimento indígena brasileiro, criado para discutir questões referentes aos povos originários e aumentar presença no Congresso Nacional. “Pertenço ao povo taurepangue, da comunidade indígena Araçá, em Roraima. Vivo na aldeia Mangueira, em Amajari. Hoje sou responsável por elevar a voz do meu povo assim como de todos os indígenas do Brasil”, explica Telma, 49 anos, defensora de maior participação feminina no movimento e com um sonho: ser a primeira mulher indígena a ocupar um assento no Congresso Nacional. “Temos que nos envolver com a política porque estamos diante de uma situação muito difícil para com nossos direitos, e precisamos de fato ocupar esses espaços, senão vem outra pessoa e faz tudo ao contrário do que foi conquistado por nós com muita luta”, pontua ela, que é pré-candidata à deputada federal, casada há 30 anos e com uma família composta por três filhos e três netos. “Além das funções de cacique, as cacicas têm as demandas da própria família e acabam se tornando mãe de toda a comunidade.”

Alice, que como inúmeras mulheres também cuida da família, faz questão de frisar que o patriarcado e o machismo ainda são questões a serem superadas no dia a dia de uma liderança feminina: “Até bem pouco tempo não éramos ouvidas. Estamos em 2022 e ainda é extremamente difícil e delicado ser uma liderança. Vivemos em um país que não honra a mãe terra. E ainda vou mais fundo. Todos os seres humanos precisam do ventre de uma mulher para nascer. O feminino é sagrado, é quem gera a vida. Vivemos em uma sociedade doente, gananciosa, inescrupulosa, que faz tudo em nome do capital, isso oprime e mata mulheres diariamente”.

“Nós, cacicas, temos o papel de orientar, apaziguar, respeitar, defender e cobrar os direitos do nosso povo”
O-É Kaiapó Paiakan,
cacica da aldeia Krenhyedjá, do sul do Pará

Maio de 2021 foi um marco para o povo indígena mebêngôkre-kayapó, do sul do Pará. Nessa data, a assistente social O-É Kaiapó Paiakan assumiu o cacicado da aldeia Krenhyedjá, na cidade de Ourilândia do Norte, abrindo mais uma porta para a representação feminina dentro das organizações indígenas, reforçando essa tendência que vem ganhando força na última década.

O-É não é novata nos movimentos sociais: desde 2013 participa de reuniões e mobilizações indígenas. Ela é assistente administrativa da Associação Floresta Protegida e secretária da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab). Em fevereiro de 2021, foi selecionada para o mestrado em sociologia e antropologia da Universidade Federal do Pará (Ufpa). Ano passado, tornou-se presidente do Instituto Paiakan, fundado em homenagem a seu pai, o líder Paulinho Paiakan.

“Além das funções de cacique, as cacicas têm as demandas da própria família e acabam se tornando também mãe da comunidade”
Telma Taurepang, cacica do povo taurepangue, de Roraima

“Convivi com meus avós caciques, meu pai, que nos colocou na escola para estudar. Sempre estive nos movimentos locais, estaduais e nacionais. Trabalhei na saúde e na educação indígena e em ONGs. Isso me fez adquirir entendimento sobre as causas do meu povo”, explica ela, que, aos 38 anos é mãe de duas meninas e está grávida. Ela engrossa o coro de Alice e Telma, ressaltando que ser uma liderança indígena mulher é um grande desafio, dentro e fora da aldeia. “As autoridades ainda não nos reconhecem como autoridades. Nós, cacicas, temos o papel de orientar, apaziguar, respeitar, defender e cobrar nossos direitos.”

Fazendo jus a seus antepassados guerreiros, a cacica Alice Guarani desabafa: “Estamos construindo com as lideranças de todo o país um movimento de indígenas em contexto urbano, para que tenhamos, inclusive, participação no censo do IBGE. Porque invisibilidade e desigualdade social, e a falta de políticas públicas, existem desde que as caravelas aqui atracaram. De lá para cá houve a perda de direitos dos povos originários em sua própria terra. As lideranças são responsáveis por estar junto à sua comunidade, lutando pelos acessos que a gente não tem pela falta de reconhecimento dos povos indígenas como detentores da biodiversidade, de saberes ancestrais… Articular com outros movimentos, com organizações que ajudem na luta dos nossos direitos é a nossa missão. Caminhar junto a seu povo em busca das melhores condições de existir. E sempre cobrar o Estado”.

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