Revista Poder

O OUTRO MUNDO POSSÍVEL

As ideias do economista Ricardo Abramovay já pareceram estar um tanto fora de lugar, mas um modelo econômico de menor atividade produtiva, que leva em conta os recursos naturais, considera o reúso de produtos e gera mais bem-estar coletivo, talvez seja uma saída mais do que razoável diante da iminente catástrofe climática. O problema é que nem isso pode fazer sentido se seguirmos desmatando a Amazônia, região que ele observa com lupas

Ricardo Abramovay

Por Paulo Vieira
Fotos João Leoci

Ser economista e propor um modelo econômico que prevê redução da atividade produtiva soa bastante provocativo – ou soava, antes do advento da catástrofe climática. Professor da USP, o economista Ricardo Abramovay defendeu no livro Muito Além da Economia Verde, de 2012, um caminho via cooperação social para preservar os recursos naturais do planeta e gerar certo bem-estar coletivo. Bem-estar que implicaria necessariamente distribuição de renda bem melhor. Tudo isso dentro das “quatro linhas” do capitalismo, bem entendido. Mas isso demandaria muito mais planejamento do poder público e desprendimento dos agentes privados. E, como diria o pacifista Mahatma Gandhi, citado por Abramovay em seu blog, “há riqueza bastante no mundo para as necessidades do homem, mas não para sua ambição”. Agora, apesar da iminência do “tipping point” no aquecimento global, Abramovay não advoga exatamente por uma redução do crescimento. O mais importante para ele é saber para onde crescer – e para quê. O economista, por exemplo, acompanha de perto o que acontece na Amazônia, cuja destruição acelerada nos últimos anos pode fazer com que os esforços de Estados Unidos, China, Índia, Japão e países europeus em mudar sua matriz energética tornem-se ociosos. A seguir, os principais pontos da entrevista, feita por teleconferência.

CRESCER OU NÃO CRESCER?
“Mais importante do que responder a essa pergunta é saber para onde crescer, para quê e para quem. Um país como o Brasil precisa de muito investimento em saúde e educação, mas certamente não em automóveis ou imóveis de luxo. Precisamos de investimentos que permitam a reocupação dos centros urbanos pelas populações periféricas de nossas cidades. Essa noção de planejamento numa sociedade em que o mercado é respeitado, é cada vez mais importante e responde à oposição binária entre crescer ou não crescer. Ter uma direção para a atividade econômica: essa é a ideia mais heterodoxa para um economista, já que, por definição, quem estuda economia parte da premissa de que as decisões são descentralizadas, respondendo a incentivos de mercado. Se o empresário tem o feeling de produzir tal coisa, desde que seja na legalidade, pode produzir. Mas hoje em dia não dá mais para ser assim, precisamos ter uma orientação – e essa necessidade é cada vez mais reconhecida nas organizações multilaterais. Por exemplo, o mundo vai ter de investir até 2030 US$ 94 trilhões para preencher suas necessidades de saneamento, eletrificação, transporte, construção de hospitais etc. E isso vai ser feito com atividades que destroem a biodiversidade.”

SOCIEDADE X MERCADO
“Os últimos 40 anos foram dominados pela ideia de que os mercados têm uma inteligência descentralizada e, portanto, muito superior a qualquer ente centralizado. Essa ideia morreu em 2008 [com a crise do subprime] e pode ser sepultada agora com a vitória de Joe Biden e com a resposta da União Europeia às mudanças climáticas. É importante que a gente tenha um horizonte em que a sociedade possa atingir objetivos estabelecidos por consenso democrático. Um dos problemas nessa direção é a completa dissociação entre a sociedade e os parlamentos [que não a refletem]. Então criou-se uma dinâmica interessante, como a da assembleia de cidadãos, a Convenção Cidadã pelo Clima, na França e também na Grã-Bretanha. Esse tipo de movimento está crescendo bastante.”

MUDANÇA DE MATRIZ
“A Agência Internacional de Energia mostra que os atuais investimentos em petróleo são maiores do que o necessário para a transição de matriz energética. E isso acontece porque as empresas sabem que em algum momento vão ter de parar de furar o chão para explorar petróleo. A lógica é: “Daqui dez anos não vai dar mais, então deixa eu tirar o que tem e tentar vender”. Houve avanços espetaculares na área das energias eólica e solar, tanto na quantidade quanto na questão do equilíbrio de preço, mas falta avançar na armazenagem. E como essas energias são intermitentes, os caminhos da transição para a matriz limpa ainda não estão totalmente definidos. Essa conversa de que só falta vontade política – não é bem assim. Ainda há conquistas tecnológicas a serem feitas, e por isso o governo Biden criou uma espécie de Darpa [agência governamental lançada pelo americano Dwight Eisenhower para avançar a pesquisa tecnológica em defesa aeroespacial dos Estados Unidos]. É preciso muita pesquisa para conseguir segurança nessa transição da matriz energética. Por outro lado, a Índia e a China disseram, em 2009, que seguiriam usando carvão e hoje têm empresas de solar e eólica que são players globais.” 

BRASIL CONTRA RAPA
“De um lado você tem Europa, China, Estados Unidos e, de certa forma, Índia, Japão e Canadá mudando o perfil da sua indústria, promovendo uma transformação profunda na matriz energética e de transporte. Você vai ter que mudar todo o sistema de aquecimento e de refrigeração domiciliar. São transformações profundas na vida da economia e das pessoas. Mas se a Amazônia for destruída, isso corresponde a dez anos das emissões globais ligadas ao efeito estufa. Ou seja, pode esquecer o combate às mudanças climáticas. Acabou.”

PENÚRIA ÉTICA
“Dizem que é muito difícil fazer algo “muito rápido” pela Amazônia. Mas difícil mesmo é mudar matriz energética, sistemas de aquecimento e de alimentação, gestão de resíduos. Tudo isso envolve comportamentos cotidianos de milhões de pessoas. Para acabar com o desmatamento é preciso apenas combater a criminalidade. Então, não é eticamente admissível que isso não seja feito rapidamente, e ainda mais com o conhecimento do que significam as mudanças climáticas. Propor acabar com o desmatamento em 2030 [e atingir a neutralidade de emissões em 2050, como Bolsonaro prometeu na Cúpula de Líderes, em abril], é dizer que só se vai combater o crime anos depois [de deixar a Presidência]. Está claro que a destruição da Amazônia responde a uma sinalização direta vinda de Brasília de que invadir terras públicas e atentar contra os territórios indígenas compensa. Antes, a expectativa de legalização dessas terras invadidas era baixa. Executivo e Parlamento juntos agora fizeram com que essa expectativa aumentasse a proporções absurdas.”

AMAZÔNIA MAIOR QUE O BRASIL
“A Amazônia acabou se tornando maior que o Brasil. Maior na questão internacional, pelos potenciais construtivos e destrutivos, e pela dimensão política. Quando, em agosto de 2019, o céu de São Paulo escureceu, viu-se que aquilo era ocasionado pelas queimadas na Amazônia. Ao mesmo tempo, a BlackRock [maior gestora de fundos de investimento do mundo] e outros fundos começaram a sinalizar que iriam deixar de investir no Brasil porque a destruição da Amazônia estava pondo a perder todo o esforço global de combate à crise climática. Esse chamado teve repercussão interna que se traduziu numa frente com empresários, ativistas, comunidades tradicionais e cientistas. Essa concertação, no Brasil, só tem na Amazônia.”

MICROFÍSICA POLÍTICA NACIONAL
“Dentre os governadores do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal há bolsonaristas da pior espécie. Em Rondônia, o governador [Marcos Rocha], com o apoio da Assembleia Legislativa, está desfazendo áreas protegidas que são fundamentais. No Acre, a Serra do Divisor, ao pé dos Andes, está sendo ameaçada, e o argumento é que [aquela] é uma área que tem muita pedra, e falta pedra para a construção civil. Há uma conjunção entre o fanatismo fundamentalista do Planalto e elites locais que não veem outra forma de utilização do solo que não seja por extração da madeira, pecuária e soja. A junção dessas coisas dá lugar a um processo destrutivo fortíssimo. Então [são bem-vindos] o Plano de Recuperação Verde, implantado pelo governador do Maranhão, Flávio Dino, à frente do consórcio, e a mobilização que levou ao Science Panel for the Amazon, reunindo 200 cientistas [e cujo relatório preliminar foi divulgado em julho].”

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