Revista Poder

RAFAEL MAFEI, PROFESSOR DE DIREITO DA USP, TRAÇA A BIOGRAFIA DO IMPEACHMENT NO BRASIL

Professor de Direito da USP e autor de "Como Remover um Presidente", Rafael Mafei discute as condições jurídicas, políticas e sociais para afastar presidentes no Brasil e explica como evitar que nossa democracia esteja sob permanente ameaça de quarteladas ou parlamentadas

Rafael Mafei || Crédito: Renato Parada/Divulgação/Companhia das Letras

Por Dado Abreu

Em  meio  a  uma  série  de  denúncias  envolvendo  contratos  para  compra  de  vacinas  contra  a  Covid-19, tem crescido a pressão pelo impeachment de Jair Bolsonaro (sem partido). Na mesa do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que tem  o  poder  de  decidir  sobre  o  andamento  do  processo,  já  são  mais  de  130  pedidos  protocolados  –  e  barrados  pelo  apoio parlamentar costurado pelo Planalto. Os denunciantes acusam o presidente de cometer crimes de responsabilidade na condução da pandemia (ao promover aglomerações e demorar a comprar vacinas, por exemplo), assim como ter participado de atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), ou supostamente interferir em instituições como a Polícia Federal. Contudo, nenhum dos pedidos teve o mérito analisado.

Para  o  professor  da  Faculdade  de  Direito  da  Universidade de São Paulo, Rafael Mafei, poupar Bolsonaro de sequer ser ameaçado pelo impeachment traz sérios riscos à democracia. Autor do recém-lançado Como Remover um Presidente – Teoria,  História e Prática do Impeachment no Brasil (ed. Zahar), Mafei argumenta que o presidente comete crimes em série e não há dúvidas sobre a viabilidade jurídica de seu impeachment.  No entanto, é  preciso  fechar  a  complicada  equação política para colocar o processo em marcha.

PODER: QUAL A EQUAÇÃO NECESSÁRIA PARA A ABERTURA DE UM PROCESSO DE IMPEACHMENT?
RAFAEL MAFEI: Impeachments prosseguem quando um determinado conjunto de circunstâncias está presente. Primeiro a popularidade do governo vai mal e há um grande descontentamento popular. Porém, não basta que esse descontentamento exista dentro da cabeça das pessoas, privadamente. É preciso que ele se externe em manifestação pública e isso, normalmente, é feito com o povo nas ruas em atos que costumam ser motivados por conta de um episódio específico, um escândalo que faça com que o descontentamento privado se transforme na comunhão em torno de um protesto. O [Fernando] Collor, por exemplo, tinha um governo contestado, impopular, seriamente abalado por denúncias de corrupção. Em determinado momento, por iniciativa dele próprio, aquilo se transformou em manifestação pública quando ele convocou as pessoas para irem às ruas com uma peça de roupa nas cores da bandeira do Brasil demonstrar apoio ao governo. E todo mundo foi para as ruas, mas vestindo preto, em sinal de desaprovação. Um segundo ponto importante é que quase sempre a impopularidade de um governo é determinada pelo seu desempenho econômico – é muito difícil que um presidente sofra ameaça de impeachment, não importa a magnitude do escândalo que o atinja, se a economia estiver indo bem. Depois, este determinado fato negativo precisa ser continuamente ecoado pelos canais de informação e, então, os políticos do Congresso Nacional, que são as pessoas que controlam juridicamente o impeachment, precisam ser compelidos a agir – mas aí entra um cálculo político porque eles avaliam se a situação deles vai melhorar ou piorar em uma eventual troca de governo. Ou seja: economia ruim, impopularidade, denúncias e escândalos, manifestação de descontentamento popular, reverberação pública pelos canais de circulação de informação e conjugação de uma estratégia política dentro dos partidos.

PODER: JÁ SÃO MAIS DE 130 PEDIDOS DE ABERTURA DE PROCESSO DE IMPEACHMENT CONTRA BOLSONARO QUE NÃO FORAM APRECIADOS NEM POR RODRIGO MAIA, TAMPOUCO POR ARTHUR LIRA. COMO EVITAR O PODER ABSOLUTO QUE O PRESIDENTE DA CÂMARA TEM NO BRASIL?
RM: A Constituição Federal não menciona a figura do presidente da Câmara. Ela diz que a Câmara dos Deputados pode autorizar, mediante 2/3 de aprovação, que o presidente da República seja processado por crime de responsabilidade. Ou seja, ela dá à Câmara, aos 513 deputados, esse poder de autorização. Já a Lei do Impeachment, a Lei 1.079, diz que a denúncia apresentada à Câmara deverá ser lida na sessão imediatamente subsequente e encaminhada para a comissão especial. Portanto, o que ela exige do presidente é que leia e encaminhe. E traz uma regra razoável: se o pedido for estapafúrdio, ou evidentemente impróprio, pode ser arquivado desde logo, sem a necessidade da criação de comissão. Um exemplo aconteceu com o Itamar Franco, que foi fotografado na década de 1990 ao lado de uma modelo [Lilian Ramos] que estava sem calcinha e por isso denunciado por crime de responsabilidade. Ou seja, é uma denúncia esdrúxula, foi direto para o arquivo. Mas o poder de ignorar, esse não está previsto em lugar nenhum, que é o que têm feito o Lira e antes dele o Maia – este tão recordista quanto Bolsonaro porque ignorou quase 100 pedidos. Foi o Rodrigo Maia que criou essa ideia de que denúncias de impeachment podem ser ignoradas. Antes dele o [Eduardo] Cunha havia inaugurado a ideia de que o presidente da Câmara é dono do impeachment, podendo usá-lo para seu benefício político e pessoal.

PODER: ESSA CONDUTA NÃO EXISTIA?
RM: Antes os presidentes da Câmara recebiam os pedidos e analisavam. Uns demoravam um pouco mais, outros menos, mas analisavam e, se fosse o caso, arquivavam. E o plenário decidia se mantinha o ato de arquivamento ou derrubava. O Lula teve seis denúncias apresentadas contra ele arquivadas pelo presidente da Câmara, houve recurso e o plenário manteve a decisão. O FHC três vezes. O impeachment tem esse componente, da Câmara exercer um controle político. Mas quem exerce é a Câmara, não é o presidente da Casa. O que o Lira está fazendo não tem amparo nem no regimento, nem na lei e nem na Constituição. É um comportamento que revela abuso de poder.

Livro examina a fundo a utilização da prática no Brasil, do século 19 até os dias de hoje

PODER: O QUE OS IMPEACHMENTS DE COLLOR E DILMA INDICAM SOBRE O CASO DE BOLSONARO E NO QUE A SITUAÇÃO DELE DIFERE DA DOS SEUS ANTECESSORES?
RM: No caso do Bolsonaro há uma particularidade porque ele desistiu de governar. Entregou esse poder na mão do Lira e mais recentemente para o Ciro Nogueira [ministro da Casa Civil]. Collor e Dilma nunca desistiram. O Collor continuou com a ideia de promover as reformas que queria, mesmo desgastado mandou um pacote de emendas constitucionais enorme para o Congresso. Ele nunca topou a ideia de entregar o governo na mão do Congresso. A Dilma muito menos. Não deixou na mão do PMDB em troca de indicações para abafar a Lava Jato, que era o grande temor do centrão na época. O que motivou parte do Congresso a embarcar no impeachment dela foi o desejo de trocar a Dilma por outro presidente que pudesse impedir o avanço da Lava Jato. Não fosse por isso o apoio ao impeachment não teria tido, dentro do Congresso, a força que teve.

PODER: SE OS IMPEACHMENTS ENVOLVEM ESCÂNDALOS POLÍTICOS, QUAL O MAIOR: O FINANCIAMENTO DE CAMPANHA DO COLLOR, AS PEDALADAS DA DILMA OU A GESTÃO DA PANDEMIA DO BOLSONARO?
RM: O Collor é um caso clássico.Tinha um governo que ia mal, teve um baita escândalo que envolvia a figura do presidente e o descontentamento popular contra ele foi impulsionado pela denúncia específica de corrupção. Tinha uma base muito estremecida no Congresso Nacional e foi detonado por um escândalo.

PODER: E O CASO DA DILMA?
RM: O caso da Dilma é diferente porque embora ela tenha sido afastada por pedaladas e decretos de crédito suplementar em desacordo com a meta fiscal, as manifestações contra o governo não tinham nada a ver com isso. Ela caiu por uma denúncia cujos fundamentos eram diferentes dos que levaram ao descontentamento popular contra o governo, que era sobretudo contra o partido da Dilma. A imagem do PT estava muito conspurcada pela ideia de corrupção e isso ajudou a colar o ônus na figura dela. É um caso único. Uma presidente não envolvida em corrupção, que sofre uma denúncia por um fundamento que muita gente não entende. Parte da população até hoje acha que a Dilma caiu por corrupção, o que não é verdade.

PODER: E AS ACUSAÇÕES CONTRA BOLSONARO?
RM: Com Bolsonaro envolve saúde pública, que na Constituição é uma competência dividida entre União, estados e municípios. Isso dá ao presidente uma margem para criar discursos em que ele distribua a culpa para os outros. Na economia você não tem como fazer isso. Quando o plano de inflação do Collor deu errado, ou quando a nova matriz econômica da Dilma deu errado, não havia como jogar a culpa no governador do Maranhão. Economia é um assunto que está nas costas do presidente, saúde pública não. Com Bolsonaro tivemos a recusa na compra de vacina para o Programa Nacional de Imunizações (PNI) e depois a questão da Covaxin que agregou elemento de corrupção – isso tem mais força do que entrar na gritaria se faltou oxigênio ou sobrou cloroquina. Isso tem ajudado Bolsonaro, porque o grande crime de responsabilidade dele diz respeito a uma matéria no qual o conflito de versões é possível de ser fabricado.

PODER: QUAIS OS RISCOS AO POUPAR O PRESIDENTE BOLSONARO DE UM PROCESSO DE IMPEACHMENT?
RM: O mais concreto é termos um processo eleitoral no ano que vem com tudo para ser caótico e quase violento. É muito raro um país que tenha uma democracia sustentável quando 30% da população cujo candidato foi derrotado acredita que foi roubada. Isso é um cenário de conflito civil, não de transição pacífica de poder. Estamos encomendando uma bomba relógio nas eleições cujo desfecho é imprevisível. O segundo risco é o de normalizarmos como comportamento político aceitável a conduta do Bolsonaro. Não dá para acharmos que, no exercício da Presidência da República, ameaçar jornalistas, não aceitar resultado de eleição, instigar ataque contra autoridades, instituições, possa fazer parte do repertório político de uma democracia. O que estamos fazendo no Brasil é não apenas abrir mão do impeachment, como abrir mão da ameaça do impeachment. Estamos criando um cenário em que o presidente pode fazer absolutamente qualquer coisa em termos de ruptura dos pactos de civilidade política que existem em uma democracia. É justamente por isso que, tanto a Constituição quanto a Lei do Impeachment, exigem que o presidente aja de modo compatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. Esse comportamento não pode ser normalizado.

PODER: NO PASSADO, EM QUE OUTROS MOMENTOS SE FALOU EM IMPEACHMENT NO BRASIL?
RM: A primeira lei brasileira a prever crimes desse tipo foi o estopim para a crise parlamentar que levou à renúncia do marechal Deodoro da Fonseca. Em 1891, quando ele viu que iriam aprovar uma lei de impeachment, tentou dissolver o Congresso, mas sem poderes para isso acabou renunciando. Ironicamente, nosso primeiro presidente republicano caiu indiretamente por causa do impeachment. Depois tivemos outros casos, como na época do Café Filho, mas foi somente após as ditaduras que os impeachments ganharam tração porque são jeitos de resolver grandes conflitos políticos sem ter que usar de alternativas menos democráticas.

PODER: VOCÊ ESCOLHEU UM TRECHO DE UMA MÚSICA DO PINK FLOYD, “COMFORTABLY NUMB”, NA EPÍGRAFE DO LIVRO: “EU ME TORNEI CONFORTAVELMENTE ANESTESIADO”. POR QUÊ?
RM: Por circunstâncias da vida. Estava ouvindo muito Pink Floyd quando escrevi o livro, músicas estimulantes e calmantes – acho “Comfortably Numb” a mais espetacular nesse sentido. E tem um significado que cabia de fundo, que é olhar com perplexidade para o fato de que muita gente normalizou a prática cotidiana, quase que orgulhosa, de agressões às instituições e autoridades, que são absolutamente elementares no regime democrático, e tem dado de ombros para isso, como se fosse um fato da vida pelo qual a gente não tivesse que lutar. Essa anestesia confortável de contemplar o absurdo e não fazer nada me deixa perplexo.

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