Revista Poder

Nélida Piñon: a senhora do tempo

Aos 83 anos e completando seis décadas de carreira literária, Nélida Piñon mantém o entusiasmo pela vida e pelo desconhecido. Neste ensaio exclusivo, a autora e imortal da ABL reflete sobre a maturidade, seu mais recente romance e os mistérios da vida

Nélida Piñon || Crédito: Jorge Bispo

Por Carol Sganzerla Fotos Jorge Bispo

“Nélida é pessoa de trato fácil. Você vai gostar dela”, avisa o amigo e editor carioca José Mário Pereira ao intermediar o convite de PODER à escritora. Mesmo ciente desse traço de sua personalidade, surpreende a maneira intimista como a autora conduz as conversas para a realização deste ensaio. As trocas com a repórter acontecem por mensagens de voz, a quem Nélida se refere por “querida”. A escolha pelos áudios tem origem da dificuldade cada vez maior de enxergar. Sentiu uma piora no início de 2020, enquanto produzia seu mais recente romance, Um Dia Chegarei a Sagres (Record), lançado no fim do ano passado, a ponto de precisar abandonar o computador e assumir os manuscritos. “Mas surgiu uma dificuldade imensa, a minha letra piorou consideravelmente. Não conseguia ler a página anterior, então, adotei a técnica de trabalhar a memória para saber o que tinha escrito três parágrafos antes. Eu não podia interromper, tinha que ir com uma ferocidade espantosa, escrevendo sem parar, não ia nem ao banheiro”, relembra.

Os bastidores da obra ainda carregam outras intempéries. Em uma visita a Madri, durante a temporada que passou em Portugal, pano de fundo da história, tropeçou no quarto do hotel. “Machuquei minha cabeça e quebrei o braço. Depois, tive que trabalhar com dor. Mas não tive medo, querida, sou corajosa. Fiz esse romance em estado de exaltação e com imensas dificuldades”, detalha. “É impressionante o sentimento que você tem de encerrar um romance que quase roubou a sua alma. Não roubou a minha porque dei a alma para o livro.”

Prestes a completar 84 anos e dona de uma memória intacta, Nélida enfrenta os desafios impostos pelo tempo na mesma medida em que reconhece as mudanças benéficas trazidas pelos anos. “A maturidade não diz quem você vai ser, é você que tem que dizer quem será. Eu fui entendendo que a minha tinha que ter menos arrebato, porque fui uma mulher sempre arrebatada pela vida, pela paixão, pelos entusiasmos”, diz. E completa: “Criei espaços livres dentro de mim que eu desperdiçava em muitas coisas e os preenchi com uma curiosidade extraordinária. E com pensamentos. Acentuei meu índice de reflexões. Tenho a sensação que penso de uma forma rápida e conclusiva como nunca. Em termos de criação, enriqueci”

Nélida Piñon || Crédito: Jorge Bispo
Nélida Piñon || Crédito: Jorge Bispo

 

Nélida Piñon || Crédito: Jorge Bispo

Comemorando 60 anos de carreira literária em 2021 – seu primeiro livro, Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, data de 1961 –, Nélida lançou mais de 11 romances nessas décadas e recebeu mais de 20 prêmios, entre eles, o Jabuti por Uma Furtiva Lágrima (Record, 2019) e Vozes do Deserto (Record, 2004). No edifício onde mora, no Rio de Janeiro, mantém um segundo apartamento só para o acervo de documentos, fotografias, papéis e memórias. “Se você ficar pensando no que fez, o passado pode corrompê-lo. Você tem que ficar criando o presente para acreditar no que é capaz de fazer”, conta. “Os diplomas que tenho na parede são por uma razão simples. Um dia, não encontrava o diploma da Academia Brasileira de Letras e tinha vergonha de pedir uma cópia ao presidente. Ele pensaria: ‘Essa mulher é louca’ (risos). Aí, quando encontrei, coloquei na parede para que não fugisse. Quem vê pode pensar que meu ego está expansionista, mas não.”

Membro da ABL há mais de três décadas, a escritora foi a primeira mulher a presidir a instituição (1996-1997). “Feminista histórica”, como se autoproclama, acompanhou as conquistas das mulheres ao longo das décadas. “O movimento é muito importante, mas vejo que há excedências desnecessárias que não acentuam a dignidade laboral da mulher. Fazer coisas na rua, ficar nua, não é isso que vai consolidar o que nós precisamos. Mas não me importo, acho que faz parte do equilíbrio de uma evolução.”

“Quero saber tudo o que atrai o ser humano, seu pão, sua casa, sua genitália, suas paixões, sua insensatez, e sua insanidade. Não posso ficar alheia à condição humana”

Em casa, Nélida está sempre conectada e costuma passar horas pesquisando os temas que lhe interessam: de pão a vacas (“sou doida por elas”), passando por Paulo de Tarso. Certa noite, conta a sua assistente, a professora Karla Silva, Nélida gritou seu nome. “Tomei um susto, era uma da manhã, corri para o quarto dela. Nélida é louca pela escritora belga Marguerite Yourcenar, já falecida, que foi enterrada em uma ilha pequena nos EUA. ‘Olha aqui, o túmulo da Yourcenar está abandonado, cheio de limo, folhas secas, tenho que fazer alguma coisa’. E ficou na internet até encontrar um belga que limpasse o túmulo. Ela é assim.”

A autora vem trabalhando em um novo livro de ensaios enquanto segue fechada em casa, na companhia de seus dois cachorros, estimulando os pequenos prazeres da vida (“gosto muito do mundo da cozinha, das conservas, tenho quatro geladeiras”), e atiçando sua curiosidade de menina. “Quero saber tudo do mundo, o que atrai o ser humano, seu pão, sua casa, sua genitália, suas paixões, suas insensatez, sua insanidade, esse clima de ódio que a gente vê no mundo. Não posso ficar alheia à condição humana. Tudo isso enriquece meu cotidiano, alarga a minha linguagem, a minha criação literária. O mistério, no fundo, é o que mais quero conhecer. É o prazer. No fundo, eu escrevo por isso”, conclui.

Nélida Piñon || Crédito: Jorge Bispo
Nélida Piñon || Crédito: Jorge Bispo

 

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