Revista Poder

Flávio Dino: saída pela esquerda

Crédito: Gilson Teixeira/divulgação

Por Paulo Vieira

O dramaturgo, jornalista e escritor Nelson Rodrigues atribuiu ao amigo mineiro Otto Lara Resende a muito famosa sentença “o mineiro só é solidário no câncer”. Uma possível adaptação da frase para os dias de hoje poderia ser: “a esquerda só é solidária no bolsonarismo”.
Bem, talvez nem isso.

Diante da iminente vitória de Bolsonaro em 2018, a esquerda não foi capaz de se unir decentemente no segundo turno em torno de Fernando Haddad (PT), como o demonstrou a viagem para Paris de Ciro Gomes, desgostoso com a falta do apoio de Lula e do PT à sua candidatura. “Foi um monumental equívoco”, diz Flávio Dino, governador do Maranhão em segundo mandato pelo PCdoB, que se tornou nos últimos anos uma das vozes mais potentes do chamado campo progressista.

Dino, que passou a ganhar octanagem política muito por conta de uma atuação digital relevante – sempre aparece no “Top 5” de Índice de Popularidade Digital (IPD) do instituto Quaest, atrás apenas de Bolsonaro, Luciano Huck, Lula e Haddad –, fortalecida pelo uso pioneiro e constante do Twitter, tornou-se também ator relevante da política nacional ao protagonizar conversas com vistas a uma aliança de centro-esquerda para fazer frente ao fortalecimento da direita. Dino foi um dos primeiros, senão o primeiro, a dialogar com Luciano Huck, por exemplo, o global sempre lembrado em anos de eleições presidenciais.

Em 2019, diante das ameaças do Executivo aos demais poderes, iniciou também uma série de conversas com ex-presidentes que culminaram com uma “charla” de duas horas com José Sarney, seu adversário histórico, que versou do medo do exílio forçado a Gonçalves Dias – o autor da “Canção do Exílio”, como se sabe, está no panteão maranhense.

O governador acredita que as eleições de novembro marcaram um “ponto de inflexão” na crise da esquerda, que ele vê surgir na esteira das manifestações de 2013 e se agravar ao longo das eleições seguintes até o “grande desastre” de 2018. Ele se diz “plenamente feliz” com a união dos partidos de seu campo em torno de candidaturas como a de Manuela d’Ávila (PCdoB), em Porto Alegre, e de Guilherme Boulos (Psol), em São Paulo. Dino chegou mesmo a aparecer na propaganda política de Boulos, junto com outros líderes oposicionistas como Lula, Ciro Gomes e Marina Silva. Mas como santo de casa não faz milagre, em São Luís não conseguiu seduzir o PDT e nem mesmo o DEM, da base de sustentação de seu governo, em torno de seu preferido, Duarte Júnior, que acabou por perder as eleições em segundo turno.

No front doméstico, apesar de estar numa das regiões do Brasil mais castigadas pela Covid-19, Dino conseguiu dar uma resposta firme à pandemia, com índices baixos de mortalidade, e celebra ter minorado os efeitos indiretos negativos do vírus, como o incremento da desigualdade educacional. A seguir, os principais pontos da entrevista feita por videoconferencia.

RECEITA DE UNIÃO
É [preciso] saber distinguir o principal do acessório. O principal é a capacidade de transformar a sociedade; o acessório, os sentimentos pessoais, as mágoas. Foi muito ruim perder a eleição de 2010 [para governador do Maranhão], porque o Lula e o PT estavam contra mim, é uma memória negativa. Em 2018, o PT mudou de posição, ótimo. Se fortalece o campo progressista, vamos lá. Se eu ficasse preso a mágoas pessoais, estaria sendo egoísta, e o bom político tem de ter empatia e altruísmo. O [sociólogo] Max Weber cunhou uma distinção entre a ética das convicções e a ética da responsabilidade, diz que o bom político não pode estar apenas preso à primeira, pois seria um fanático; e não pode estar preso apenas à ética da responsabilidade, porque seria um cínico. Não é nunca voltar atrás, mas tampouco aceitar qualquer coisa. Ciro Gomes em 2018 [ao não expressar apoio enfático a Haddad no segundo turno da eleição presidencial] foi um monumental equívoco. Colocou na frente suas reclamações pessoais, eventualmente até legítimas, mas que não poderiam justificar assistir ao Bolsonaro ganhar a eleição.

PLURALIDADE
O campo progressista tem de ser plural, porque a sociedade é plural. Há um traço distintivo do campo progressista e popular que é o combate à desigualdade. Mas debaixo desse guarda-chuva tem de ter capacidade de matizar a atuação, porque a sociedade é matizada, nuançada, e a gente tem de buscar representatividade, aderência. Esses coletivos periféricos [eleitos para vereador em 2020] ajudam a chegar mais perto dessa pluralidade da sociedade. Aqui mesmo em São Luís, tivemos a eleição de um grupo de jovens vinculados à Pastoral da Juventude, de movimentos de bairro de perfil bem popular, acho muito positivo.

2020, 0 ANO DE INFLEXÃO
Estou plenamente feliz com a perspectiva de união [da esquerda]. Houve um alinhamento total em torno da Manuela d’Ávila, em Porto Alegre, e em São Paulo, com o Boulos, de quase 100%. Isso também aconteceu em Fortaleza e Belém. Aqui em São Luís foi mais difícil, porque não houve um candidato de partidos de esquerda. Acho que 2020 é um ponto de inflexão, quando saímos da crise que se abriu em 2013 e reverberou fortemente [nas eleições de] 2014, 2016 e 2018. Em 2014 já se produziu uma fragmentação, o PSB apoiou no segundo turno o Aécio [Neves, PSDB]. Em 2018 [veio] o grande desastre, a eleição do Bolsonaro. Agora saímos da defensiva. Este 2020 é de resultado razoável para bom, marca uma reversão de expectativas. Sublinho a mudança de ambiente, agora de mais diálogo.

A GRANDE META
[A questão a resolver é] a contradição principal que há na política brasileira, que é com o bolsonarismo. Acho que o Brasil não aguenta quatro anos de Bolsonaro, não sei se aguenta mais um ano. Não sou profeta, mas acho que seu governo está numa decadência, que vai levar à própria inviabilização. Então é preciso saber qual é o critério; o meu é derrotá-lo em 2022. Hoje a oposição pode integrar uma mesa, mas não vejo como em primeiro turno estar junto do Sergio Moro, ou do Luciano Huck. Não passa pela minha cabeça. A visão econômica, por exemplo, a do estado ausente [deles] é diferente da minha. Mas no Rio de Janeiro a esquerda em torno do Eduardo Paes, que é do DEM, é a prova de que você tem de manter um ambiente que permita que em segundos turnos se converse. Pensando nas condições de hoje, não acredito numa geringonça [a frente de centro-esquerda portuguesa] em 2022 no Brasil, não imagino um grande centro ampliado. O que lembro sempre é a eleição na França entre Chirac e Le Pen, a direita contra a extrema direita. E aí a esquerda votou no Chirac, disse “não vamos deixar o facismo ganhar”. Eu luto para que a gente não tenha isso em 2022, ou seja, Bolsonaro contra um candidato da direita. Mas, e se acontecer? Se a esquerda passa de novo contra o Bolsonaro, você vai deixar todo mundo apoiar o Bolsonaro? Aí o resultado é a repetição de 2018. Para não repetir, eu converso amplamente com todo mundo que não tem vinculação com o bolsonarismo.

O PRESIDENTE EXÓTICO
Bolsonaro se notabiliza por vários aspectos exóticos, entre os quais ser o presidente que menos se relaciona com os governadores na história do Brasil. Não só é distante, é inimigo. Ele nutre um ódio patológico por mim e pelo [João] Doria, que não somos do mesmo campo político. Instituiu-se uma prática, que nunca houve no Brasil, de os ministros visitarem estados, e os governadores sequer serem informados, isso é inusitado até sob a ótica da boa educação. O presidente veio agora a Imperatriz, e eu não fui sequer comunicado, ele veio pra fazer movimentação eleitoral travestida de agenda oficial, inaugurar quilômetros de asfalto. Hoje os estados de modo geral lidam por suas próprias forças, no que é possível a gente conversa. Quando algum ministro convida, eu estou presente. Essa hostilidade é tanta que, pelo decreto do Bolsonaro, os governadores sequer participam do Conselho da Amazônia. [O vice-presidente Hamilton] Mourão, que é mais inteligente, ouve informalmente os governadores. Tentamos, quando possível, dialogar, mas é uma relação bastante distante entre a esfera federal e os estados.

UM HOMEM SEM ATRIBUTOS
Do ponto de vista administrativo, gerencial, Bolsonaro não tem nenhum atributo para o bom exercício da função, e isso não é força de expressão. Não tem capacidade técnica, não tem disciplina, não tem apetite por gestão, é mal assessorado, não arbitra controvérsias. Por isso o país está à deriva. Seu governo se resume a meia dúzia de frases toscas, preconceituosas, agressivas e criminosas e ao auxílio emergencial, que conquistamos no Congresso. Tirando isso não sobra rigorosamente nada.

COMO NAVEGAR ATÉ 2022
Com muita fé em Deus, e muita capacidade de resistir. É uma prova de resistência aguentar quatro anos de Bolsonaro, até psicologicamente. No tema das vacinas, a gente fica horas em reunião, faz acordo, todos comemoram, quando dá 8 horas da manhã, ele rasga o acordo, desmoraliza ministro. Fazer acordo numa mesa em presença de líderes do próprio governo, com governadores e cientistas, e rasgar isso a meu ver é até mau-caratismo. A Presidência vai entrar num quadro de confusão com as dificuldades dos filhos. Eu sou pai, fico pensando em [como é ter o filho] processado por coisas que sabia e participava. Como isso que é chamado simpaticamente de rachadinha, mas que é crime gravíssimo, peculato, roubo de dinheiro público. Quando você soma cerco econômico, governo sem gestão com os problemas policiais que eles têm, pode até ser que a conjuntura do impeachment se recoloque.

Crédito: Evandro Filho/divulgação

TRANSIÇÃO À TRUMP
[Se Bolsonaro perder sua suposta reeleição] vai fazer pior [que Trump]. Porque o sistema institucional dos Estados Unidos ainda protege, por exemplo, a segurança do presidente eleito. No Brasil, a atitude de Bolsonaro seria a mais irresponsável possível, porque ele é assim, de uma irresponsabilidade absoluta, ao ponto de praticar uma política externa inconstitucional, prepotente, de achar que o Brasil deve se meter em eleições de outros países. A única vantagem dessa ingerência é que agora todo chefe de estado do mundo foge dele, dada sua justa reputação de azarado. De Macri a Trump, todos se deram mal.

O QUE VEM DEPOIS DO AUXÍLIO EMERGENCIAL
Com o desemprego, o fim do auxílio emergencial é uma soma genocida, é você condenar milhões de brasileiros à morte. Por indigência, doenças, abandono. Estou entre aqueles que acham que vale todo o sacrifício para manter o auxílio enquanto não houver política de geração de emprego. Aqui no Maranhão reuni R$ 559 mi e lancei um plano emergencial de emprego. Intensifiquei obras, realizei compras de agricultura familiar, de economia solidária. Isso deveria ser feito no plano nacional, com a utilização de fundos públicos. Todos os fundos constitucionais, como o FAT [Fundo de Amparo ao Trabalhador] e do Aviação Regional, têm dinheiro em caixa.

RESPOSTA À COVID
Há a tendência de que se verifique [uma segunda onda] não só no Maranhão, como na Amazônia. O primeiro semestre é a estação chuvosa, quando as síndromes gripais e respiratórias agudas se manifestam. Se você lembrar bem de 2020, o auge do coronavírus ocorreu em primeiro lugar no Amazonas, depois Pará, Amapá, Maranhão. À medida que a vacinação não chegue, há essa tendência, por isso mantenho o cronograma de ampliação de leitos. Quanto ao lockdown, é o último instrumento. Aqui seguimos muito a dinâmica da Amazônia, e quanto à letalidade, temos os menores indicadores do país. Penso que esse resultado seja derivado de uma série de vetores, desde medidas preventivas como o lockdown, medidas assistenciais como a ampliação da rede de saúde e do suporte dos comitês científicos local e do Nordeste [coordenado pelo neurocientista Miguel Nicolelis].

O DÉFICIT EDUCACIONAL
Há três grandes heranças negativas do coronavírus, a ampliação da desigualdade educacional, a retenção dos procedimentos [clínicos] eletivos e os danos psicológicos. Em relação às desigualdades educacionais, tomamos desde abril medidas para mitigá-las. Como as aulas on-line da plataforma Gonçalves Dias, que tem 300, 400 aulas hoje. Para os estudantes do ensino médio terem acesso a isso nós distribuímos 100 mil chips com pacotes de dados. E, finalmente, usamos rádio e TV [para as aulas]. Foi para reduzir danos, tenho a convicção de que não é suficiente, mas em três consultas a estudantes, famílias e professores, eles preferiram não retornar às aulas, nem às semipresenciais.

IDH X PIB
Desigualdade é o nosso problema histórico desde o século 19. Após os grandes ciclos do açúcar e do algodão, depois o arroz, a economia do estado foi se depreciando. Mas temos melhorado. Tenho certeza que na próxima mensuração do IDH, subiremos. O crescimento do PIB é importante, mostra que há mais riqueza circulando. Em 2018, quando o país estava em recessão, o PIB do Maranhão cresceu 50% mais que o do Brasil. No IDH, nós focamos os indicadores atinentes à educação e à saúde. Abrimos 20 novos hospitais, temos mil obras educacionais, o Ideb [índice que mede o desempenho educacional dos estados] está crescendo depois de anos de estagnação e até de queda. Fizemos um programa de combate à desigualdade territorial para as 30 cidades de menor IDH do Maranhão, que estão entre as 100 de menor IDH do Brasil. Abrimos lá restaurantes populares, construímos sistemas de água, há programas de fomento à agricultura familiar e de alfabetização. Para elevar a riqueza do estado e garantir que esses municípios possam andar um pouco mais rápido do que os demais, e reduzir a desigualdade territorial.

CONVERSANDO COM SARNEY
Naquele momento, em 2019, eu enxergava risco iminente de golpe militar, Bolsonaro chegou a cogitar fechar o Supremo e o Congresso. Como não tenho projeto de vida ser exilado, e se tivesse êxito o intento [do golpe], eu seria um dos primeiros alvos, procurei conversar. Não só eu, um monte gente. Falei com Rodrigo Maia, com Alcolumbre e fiz um circuito pelos presidentes. Sarney é meu adversário regional, continuamos em caminhos diferentes, mas foi uma visita para colocar a preocupação com a democracia. Ele tem muitas relações, e ao mesmo tempo temos algo em comum, que é o gosto pela literatura. Foi uma conversa longa, de duas horas, metade política nacional, metade sobre Gonçalves Dias, padre Antônio Vieira, sobre os grandes poetas do Maranhão. Naquele momento [formava-se] uma frente ampla de proteção à democracia contra o golpismo, e deu certo, se não fosse a resistência do Supremo, os ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes tiveram papéis muitos importantes, Rodrigo Maia e [Davi] Alcolumbre também, os governadores. Foi só por isso que Bolsonaro não perpetrou mais uma barbaridade militarista e miliciana, de rasgar a Constituição. Não foi falta de vontade, faltaram-lhe as condições.

ESPETO DE PAU
Flávio Dino pode ser um nome fulgurante em especulações presidenciais para 2022, mas em seu estado, o Maranhão, sua significativa popularidade (45% de ótimo e bom segundo o Ibope, em outubro) não foi capaz de fazer do candidato Duarte Júnior, a quem apoiou, o novo prefeito de São Luís. Na verdade, nem mesmo os partidos de sustentação do governador estiveram com Duarte – o PDT preferiu alinhar-se a Eduardo Braide, do Podemos, que venceria a eleição.

O PDT, que tem Ciro Gomes como seu grande nome, vem construindo uma aliança nacional principalmente com o PSB, e a disputa pela prefeitura de Recife, em que João Campos, do PSB, desbancou a prima Marília Arraes, do PT, pode trazer dificuldades para a frente ampla desejada por Dino. Ciro, aliás, menos de 24 horas após o encerramento do segundo turno, já isolava o PT no mesmo campo a ser superado – o do extremismo, onde também colocou Bolsonaro. Dino não concorda com a observação e não vê como afastar o PT – e Lula – da concertação contra o bolsonarismo em 2022. Não por acaso foi votar no domingo com uma vistosa camiseta com a inscrição “Lula Livre”. A imagem, aliás, mereceu um comentário jocoso de Ciro: “Perdeu a noção da realidade”, disse. Pelo Twitter, o governador replicou com gentileza: “Não me cabe acirrar conflitos desnecessários”.

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