Revista Poder

A psiquiatra Natália Mota sonha um futuro pós-pandemia

Crédito: Getty Images

Por Natália Mota

O ano de 2020 foi em si distópico. Futuro distante, futurístico, sem precedentes: ameaça está no ar, não há solução viável, curva ascendente de mortos, vida escassa, enclausurada, apertada, negociada. E agora, José?

Diante de uma realidade sui generis, voltamos a mente para nosso maior potencial: adaptação. E seres sociais que somos, temos consciência que a nossa sobrevivência depende dos nossos. Mas como nos aproximar, se a ordem é proteger o próximo, e proteger agora é distanciar? Como reinventar as relações afetivas, de trabalho, de convivência e sobrevivência num ambiente distópico no qual respirar o mesmo ar já não é mais seguro?

Mamíferos espertos que somos, aprendemos a criar ao longo da nossa existência. E pensar em soluções futuras é uma das nossas maiores habilidades. Imaginar, sonhar, processo fisiológico da nossa mente, nasce como simulacro de futuros possíveis e nos permitem treinar habilidades e soluções. Algumas teorias recentes em neurociências nos ajudam a entender mais: sonhar parece nos ajudar a digerir as memórias emocionais adquiridas diariamente. Seria sonhando que extraímos o aprendizado do que vivemos, excretando o excesso tóxico de emoções. Nesse sentido, muitos de nós saíram da digestão de sopa de legumes do cotidiano para uma feijoada completa em 2020, caprichada em medo e frustrações. Sonhar nos permite treinar estratégias de ultrapassar ameaças, ou até mesmo treinar habilidades sociais que nos permitam adaptação às novas contingências.

Em 2020 testemunhamos a migração de tantas formas de trabalho para formatos virtuais, relações afetivas aproximadas pela tecnologia, trazendo uma nova realidade, possibilidades de estar juntinho. Sonhar junto ao alcance de sua rede de contatos, experimentar o mundo de outra forma.

Mas é aqui que a realidade onírica, imagética, virtual, topa com a realidade física. Continuamos com todas as nossas necessidades de contato. Afeto. Carinho. Mais, precisamos comer, nos movimentar, saber para onde ir. Precisamos de um lar seguro, limpo, acolhedor. E como será viver em dois mundos? Como será cuidar do ambiente real de uma casa e das relações virtuais?

Pergunte às mulheres que viveram 2020. Algumas sofreram mais, sem dúvida. Mas podemos afirmar que as diferenças de gênero estruturais na nossa sociedade afetaram todas nessa nova contingência. Jornadas duplas e triplas de trabalho para sustentar e cuidar dos seus tornaram-se jornadas simultâneas. Os acordos de trabalho precarizados pela estrutura centenária de opressão agiu implacável. Nesse pesadelo indigesto acrescente o peso do confinamento com alguém que era para ser parceiro, mas talvez seja bem diferente do que ela percebia – não à toa as estatísticas de violência doméstica e feminicídio aumentaram vertiginosamente.

A realidade distópica se misturou aos sonhos: estudos sobre o impacto da pandemia nos sonhos são unânimes em afirmar que as mulheres tiveram mais pesadelos. Não há mais triste comprovação que realmente nossos sonhos espelham a realidade.

*Natália Mota é psiquiatra com pós-doutorado em neurociências pelo Instituto do Cérebro da UFRN e fundadora do grupo Sci-Girls, rede de apoio a mulheres na ciência

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