Revista Poder

PRIMEIRA PRESIDENTE DA SOCIEDADE RURAL, TEKA VENDRAMINI QUER FALAR COM O AGRO QUE NÃO É POP

Por Paulo Vieira | Fotos: Roberto Setton

Em Aventuras do Dr. Bogoloff, o escritor modernista Lima Barreto faz do personagem que dá título ao livro, um professor de letras russo recém-chegado ao Brasil, a autoridade máxima da pecuária brasileira. Sem qualquer conhecimento técnico na área, bastou a Bogoloff ter conhecido um senador voluntarioso e cultor de armas para ser indicado ao almejado cargo público. Apesar de filha e neta de produtores rurais com décadas de lida, a paulista de Adamantina Teresa Vendramini, a Teka, de 61 anos, talvez tenha se sentido um pouco como Bogoloff quando herdou e assumiu a administração de uma das fazendas da família, a Jacutinga, em Flórida Paulista, cidade a 600 quilômetros de São Paulo, próxima ao rio Paraná e à divisa com o Mato Grosso do Sul. Formada em sociologia na capital paulista, ela se radicou com gosto na metrópole e empreendeu no setor têxtil, afastando-se do campo, onde nascera, mas que havia conhecido principalmente como desfrute. De volta à roça, no fim da década passada, teve de se entender com peões, processos e o próprio plantel bovino, que decidiu incrementar. Para isso começou praticamente do zero, comprando reprodutores zebuínos da raça brasileira tabapuã e sêmen de touros de origem inglesa angus, além de adotar várias outras medidas relacionadas à melhoria das condições do pasto.

Diz-se que o tempo passa mais lentamente no campo, mas essa percepção não tem qualquer valor naquele pedaço do oeste paulista. Teka tinha toda a pressa do mundo para dominar o novo ofício e tornar a Jacutinga lucrativa. Após se capacitar em diversos cursos da Embrapa e da Escola Superior de Agricultura da USP, em Piracicaba, ela não apenas levou a propriedade a um novo patamar, como se tornou uma respeitada liderança rural. Primeiro dirigiu o Núcleo Feminino do Agronegócio, formado no começo da década de 2010 por 25 fazendeiras, depois, em 2017, Teka passou a ter o seu nome confundido com o da centenária Sociedade Rural Brasileira (SRB), uma das mais tradicionais entidades de defesa do produtor agrícola, fundada em 1919 pela nata da aristocracia cafeeira paulista. Em 2020, tornou-se a primeira mulher a presidi-la.

Pode-se argumentar que a chegada de uma liderança feminina ao posto máximo de uma entidade tão tradicional diga mais sobre a entidade e os tempos que correm, em que equidade e diversidade são temas de tantas agendas, do que sobre a própria Teka, mas ela fez por onde: tornou-se importante voz do setor ao participar de dezenas de encontros e fóruns em todo o Brasil desde que se tornou administradora rural e ainda mais ao ingressar na SRB, em 2017, a convite do então presidente Marcelo Vieira. Jamais uma mulher havia tido qualquer posição no comitê executivo da Rural, composto por seis pessoas. A diretoria de pecuária foi criada por Vieira – e abraçada por Teka, que a preferiu a liderar uma vertical feminina. Em sua gestão como presidente, também decidiu manter uma mulher no comando da pecuária.

Cultora de alguns velhos hábitos, a Rural preserva uma coleção de retratos a óleo de ex-presidentes a ornar as paredes do auditório da sede, no 19º andar de um dos edifícios mais altos do Vale do Anhangabaú, no coração de São Paulo. O retrato só é encomendado e descerrado em solenidade própria pelo sucessor imediato, mas já dá para imaginar o contraste que seu quadro causará ao lado dos de dezenas de homens de bigodes hirsutos e posturas artificialmente rijas. Foi nesse silencioso ambiente de mobiliário pesado e registros de atos cuidadosamente encadernados em tomos, que uma muito informal dirigente conversou com a PODER. “Eu quero estar com todo mundo, vim para fazer isso, escutar todos os lados, compor com entidades, isso não é da boca pra fora. Se chamarem a ‘Teka’, eu vou.” A frase é genérica o suficiente para indicar inclusive uma vocação política isentona, mas Teka revela um objetivo menos vago ao se mostrar preocupada principalmente com as condições do “pequeno produtor”, aquele que pode ter apenas a família na lida, às vezes com alguns poucos funcionários a ajudá-lo, às vezes sem nenhum. Para ela, esse pequeno produtor representa de 80% a 88% do contingente de empreendimentos rurais do país – e, ironicamente, ele não tem condições financeiras de se associar a uma entidade como a Rural. Eis um agro que passa longe da mecanização intensiva, da tecnologia de ponta, daquele “agropop” exibido em horário nobre na TV aberta. “A gente brinca que já tem até a fazenda 6.0, eu estive numa no Pará que era uma loucura, tudo muito orquestrado, até a água usada para lavar caminhões e os aviões que pulverizam a plantação é escoada por grandes ralos e tratada; mas tem também aquele produtor que desconhece tudo isso. Pode ter 5G hoje para alguns, mas na minha fazenda no interior de São Paulo nem sempre o celular pega direito.”

A dirigente, que “não é muito de falar de números, mas de pessoas”, tem algumas estatísticas na ponta da língua. Este ano, o Brasil, diz ela, entrega uma safra recorde de 250 milhões de toneladas de grãos. “É uma loucura. O agro emprega cerca de 1/3 da mão de obra brasileira e ainda contratou mais durante a pandemia.” Sabe-se com menos precisão o quanto desse 1/3 é mulher. Teka acredita que elas respondam sozinhas por 30% do conjunto de profissões ligadas ao setor – além das próprias produtoras rurais, agrônomas, veterinárias, advogadas etc. Dados compilados pela assessoria da Rural indicam que as mulheres estão em 30% dos postos de liderança do segmento, o que coloca o agro nesse quesito à frente da indústria (onde elas ocupam 22% dessas posições) e tecnologia (20%); além disso, uma em cada cinco propriedades rurais é tocada por elas, mas o número praticamente dobra quando são somadas as profissionais que dividem a administração das fazendas com seus familiares. A liderança feminina no campo é fenômeno recente e crescente: só nos últimos 12 anos, houve acréscimo de 38%. Para Teka, as mulheres “têm um olhar mais amplo” nas fazendas. “A gente parece polvo, vê tudo, da cerca ao funcionário que não parece muito bem.” Se é assim, tudo indica que é bastante oportuno que ocupe o comando do Ministério da Agricultura e Abastecimento uma mulher, a deputada licenciada Tereza Cristina (DEM-MS), por quem a xará da Rural é só admiração. “Não falo por todo o agro, mas o apoio [do setor] à ministra é unânime. É muito engraçado, mas quase todas as pessoas com quem converso pedem sempre para eu mandar um abraço para ela. Se eu fosse realmente atendê-las, acho que não daria tempo de fazer mais nada. Quem está na roça está profundamente satisfeito com sua gestão”, diz Teka.

 

RECORDE NA PANDEMIA
Responsável por 21% do PIB brasileiro, o agronegócio vem exibindo vigor. O país é o principal produtor mundial de commodities agrícolas como café, soja, açúcar e suco de laranja e maior exportador de carne de frango do planeta. O setor teve ganhos até mesmo neste problemático 2020, subindo a barra durante a pandemia, quando tantos outros setores afundavam conspicuamente. O feijão, para exemplificar, deverá ter produtividade 5,5% maior na safra 2020/2021 em comparação à anterior. “O agro brasileiro mostrou para o mundo nossos protocolos sanitários, a gente estava muito preparado. A crise da Covid me parece transformadora, não só por legar novos hábitos, como as reuniões virtuais, mas por mostrar a interdependência das sanidades humana e animal. E de como é importante ter isso bem equacionado”, diz Teka. Para a dirigente, situações como as vividas na China, em que mercados públicos vendem – ou vendiam – carne de animais sem seguir qualquer protocolo de vigilância sanitária, origem potencial da difusão do vírus da Covid-19 entre as pessoas, seriam impossíveis no Brasil. “Menino, se eu quiser abater uma cabeça de gado, é uma dificuldade. Pra começar, a gente tem de ter todas as vacinas em dia, seguir tudo direitinho.”

Assim como quer fazer a Rural chegar ao pequeno produtor, possivelmente oferecendo algum tipo de capacitação técnica a quem precisa, ela diz que é urgente que os atores do setor tenham um posicionamento claro e decidido em relação às questões ambientais. Seu guia máximo é o Código Florestal, conjunto de regras tornadas leis em 2012, após longa sequência de debates e ritos legislativos. “Ele é fruto de mais de 900 audiências públicas, e dá para dizer que é bom justamente por não ter agradado muito nem a um lado nem a outro”, revela. O ex-deputado federal Aldo Rebelo (hoje no Solidariedade, mas por muitos anos do PCdoB), principal artífice do código, tornou-se consultor da Rural a pedido de Teka.

 

“A crise da Covid é transformadora, não só por legar novos hábitos, mas por mostrar a interdependência das sanidades humana e animal. E de como é importante ter isso bem equacionado”

 

De fato, a pujança do agro brasileiro vem sendo empanada pelas péssimas notícias produzidas na área da preservação ambiental. É consensual entre especialistas e dirigentes setoriais que a agricultura e a pecuária do país têm muito espaço para crescer sem precisar transformar necessariamente florestas em áreas cultiváveis ou pastos. A pressão da mídia internacional e o aumento da exigência por parte dos fundos de investimento, mesmo aqueles que não se identificam propriamente como ESG, fez com que até os três principais bancos em operação no Brasil redigissem em conjunto um decálogo de medidas para sustar ou atenuar o desmatamento crescente da Amazônia. Para complicar, se nos últimos anos o fogo parece ter-se tornado “default” na região, em setembro e outubro a mata ardeu sem dó, muito acima dos níveis históricos, em outro bioma, o Pantanal. Fotos de macacos e tatus carbonizados, onças e muitos outros bichos endêmicos da região desesperados correram o mundo. Uma investigação da Polícia Federal colheu indícios de que, em busca de criar novas áreas de pastagem, quatro grandes fazendeiros de Corumbá, cidade nos limites com a Bolívia, teriam iniciado um dos principais focos do fogo da seção sul do Pantanal. Nessa hora, Teka dá um boi, ou melhor, uma boiada inteira, para não puxar o produtor rural para essa conversa. “Sinceramente, fogo, desmatamento, grilagem, extração ilegal de madeira, isso tudo é caso de polícia, não tem nada a ver com a gente”, conta.

ALINHAMENTO
Ainda que esse discurso seja bastante alinhado com o do governo federal, não dá para creditá-lo às ligações históricas da entidade com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ex-diretor jurídico da SRB, com quem Teka não conviveu na Rural. De qualquer forma, a instituição vem endossando posições bastante polêmicas do ministério. Como as resoluções da reunião do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) de 2 de outubro, que colocaram sob ameaça áreas de restinga e manguezais – no fim de outubro, a ministra Rosa Weber, do STF, acolheu uma medida liminar da Rede que susta essas medidas até o julgamento do mérito. O Conama teve enfraquecida a representação de entidades desvinculadas ao ministério, o que permite a Salles controlar melhor suas decisões. Teka, contudo, vê nas medidas de outubro apenas a aplicação do Código Florestal.

Foi em outro momento estrelar de Ricardo Salles, durante a famigerada reunião ministerial de 22 de abril em que o ministro sugeriu a aprovação de normas infralegais em sua área enquanto a atenção da mídia estava voltada para a crise da Covid-19 – na frase famosa: “ir passando a boiada” –, que a Rural da gestão Teka viveu sua principal crise. Em maio, após a divulgação daquela reunião, a entidade se juntou a outras dezenas num anúncio em desagravo ao ministério de Salles publicado em página inteira nos principais jornais brasileiros. O título dizia: “No meio ambiente, a burocracia também devasta”. Foi suficiente para que Pedro de Camargo Neto, ex-presidente entre 1990 e 1993, renunciasse a seu posto de vice-presidente. “Pretender usar o momento de dor e mesmo pânico na saúde pública para aprovar medidas contra a burocracia fere meus princípios”, disse ele ao jornal O Estado de S. Paulo.

Pela importância econômica do agronegócio, os desafios da primeira mulher a presidir a Rural são grandes, mas com 27 conselheiros e vozes às vezes conflitantes entre seus associados, tanger o rebanho da SRB talvez seja a tarefa mais complicada que Teka irá enfrentar até o fim de seu mandato, em 2022.

NOVO PAPEL
Com quadros e estatuetas espalhados por suas várias salas, a sede da Rural em São Paulo tem ao menos duas telas de pintores de estilos muito diferentes que mostram situações de certa forma semelhantes. Numa delas, ao lado, que retrata uma sessão solene de um congresso de cafeicultores liderado pelo presidente do Estado de São Paulo (posto equivalente a governador), Júlio Prestes, não aparece uma única mulher; já o óleo Florada do Café, do italiano Antonio Ferrigno, produzida em 1903 na Fazenda Victória, em Botucatu (abaixo), e que decora a sala da presidente, exibe no canto da imagem duas camponesas na lida do café. A posição secundária da mulher na pinacoteca da Rural expõe e reforça, para Teka, a simbologia de sua própria posse. “Eu olhava para essas mulheres do quadro e pensava: agora estamos em outro lugar.”

 

VOCAÇÃO MODERNA
Atual secretário da Agricultura do Estado de São Paulo, Gustavo Junqueira, que presidiu a Rural entre 2014 e 2016, diz que a SRB “sempre se pautou pela convicção, não pela conveniência” e que, mesmo em 1919, “ela olhava o futuro, pois já buscava a integração de toda cadeia de negócio”. Ao envolver na ata de fundação não apenas cafeicultores, mas atores de outras áreas, como os de logística, a Rural, na opinião do secretário, mostrava uma vocação de modernidade que volta a se cumprir neste 2020 sob Teresa Vendramini. Para ele, Teka, com suas viagens, “vem abrindo grande canal com produtores fora do circuito tradicional” e mantém boa interlocução com os entes governamentais. “Em São Paulo, Teka ajuda e tem grande papel na coordenação do setor, que é composto por muitas outras entidades além da Rural, para a implantação do nosso programa Agro Legal”, diz. O programa, lançado em setembro, regulamenta o Código Florestal no estado e busca ampliar as áreas de preservação ambiental sem redução da produção agrícola. Junqueira ainda destaca o fato de Teka estar sentada em conselhos de coalizões entre o setor financeiro e ONGs ambientais com vista à preservação de nossos biomas. De uma família de produtores rurais de Orlândia e hoje com 48 anos, Junqueira personifica uma ala que cresce na Rural – a que tem de 30 a 45 anos. Hoje a Rural “jovem” já tem mais assentos no conselho do que os membros mais idosos.

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