Por Victor Santos / Ilustração: David Nefussi
George Orwell escreveu o romance 1984 no fim da década de 1940, depois da sanguinária Segunda Guerra Mundial, que terminou com a promessa de uma paz que foi rapidamente desconstruída por sucessivos conflitos internacionais, satélites do belicismo crescente entre Estados Unidos e União Soviética, os países protagonistas da Guerra Fria. Orwell em sua obra criou um sistema político autoritário, que exacerbava o controle sobre a população, eternamente vigiada pelo famoso Big Brother. A distopia antevista ali hoje parece assimilada por dramaturgos e roteiristas – vide Black Mirror e Years and Years –, mas, infelizmente, também por quem não trabalha exatamente no registro da ficção. A realidade é que a distopia no século 21 já é bastante palpável, e, de certa forma, confunde-se com o noticiário. Tornaram-se notícias: pais e filhos são separados em campos de concentração para refugiados; presidente proíbe o uso da palavra “problema”; aplicativos vendem dados de usuários sem autorização prévia; câmeras e microfones de celulares podem ser ativadas a qualquer momento; isolamento social é prática quase obrigatória por conta de uma pandemia. Distopia, registra o dicionário, é o lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; o contrário de utopia. Utopia, por sua vez, foi o termo cunhado pelo pensador londrino (e mais tarde santo da igreja católica romana) do século 16 Thomas Morus. Sua utopia, junção do termo grego antigo topos (“lugar”) e o prefixo de negação, sugere um lugar a ser alcançado. A contraposição apareceu em 1868. Na ocasião, o filósofo conterrâneo John Stuart Mill preferiu o prefixo “dis”, que remete a dificuldade ou dor. Com tudo isso, pode-se dizer que os romances distópicos já existiam antes de Stuart Mill colocar em circulação o conceito. O pioneiro As Viagens de Gulliver, de 1726, de Jonathan Swift, usa a sátira para retratar a mesquinhez humana, sentimento que o protagonista vivencia ao longo dos “diversos países remotos do mundo”, como anuncia o subtítulo. De qualquer forma, a distopia começava a aparecer em levas. O otimismo com a Revolução Industrial e seus ganhos recordes de produtividade foi logo contraposto pelas condições análogas à escravidão a que eram submetidos os trabalhadores fabris; e a tríade “igualdade, liberdade e fraternidade” da Revolução Francesa não salvou da guilhotina seus próprios líderes (e trouxe rapidamente de volta a monarquia derrubada).
SEQUESTRO DO POSSÍVEL
Para Maria Elisa Cevasco, professora de literatura inglesa do departamento de letras modernas da USP, “pode parecer que a utopia mostra um mundo maravilhoso e a distopia um mundo horroroso, mas, na verdade, ambas revelam uma profunda insatisfação com a realidade”. Sobre a aproximação atual – e assustadora – entre distopia e realidade, ela cita uma passagem do crítico literário e teórico marxista Fredric Jameson: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do modo de vida capitalista”. A professora recorda ainda um famoso acrônimo creditado à ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, o “Tina”, de “There is no alternative” (“Não há alternativa”, em português). Não havia alternativa, no caso, à vida numa sociedade regida pelas regras do livre mercado. “Ela conseguiu caracterizar uma mudança radical que começa nos anos 1980 e vem até hoje. Ninguém consegue imaginar um modo de vida alternativo e nem tem onde se agarrar. Por mais que hajam críticas na existência de dois mundos, como era na Guerra Fria, pelo menos corriam duas histórias e dois jeitos de organizar a vida. E agora? Nesse momento as obras de arte utópicas e distópicas atingem a sua maior relevância”, analisa. Novas formas de vida, configurações familiares, avanços no campo cultural não representam outro caminho? Sobre isso, Maria Elisa pondera: “A utopia que esses movimentos podem representar é contida pela distopia. Que é a realidade”. O filósofo e professor do departamento de filosofia da PUC-SP, Peter Pál Pelbart, aponta outro aspecto: o estrangulamento da imaginação política. “O mais terrível hoje é o sequestro do possível. Vários mecanismos de controle, aliados à dimensão bélica do capitalismo e à guerra declarada contra as populações, como é o caso no Brasil – veja a atitude governamental em relação à pandemia –, podem ter efeitos devastadores. Em que medida ainda conseguimos imaginar que outra coisa seja possível?” No entanto, Pelbart acredita que momentos de crise como o atual podem reabrir a imaginação política, abrir novas brechas, sem ficar preso a um ideal pronto: “Não se trata de apresentar um desenho acabado e nele encaixar a sociedade. Utopias prontas também resultaram em massacres gigantescos e nos totalitarismos mais tenebrosos. É preciso ficar atento ao que vai surgindo de novo, inclusive nos pequenos nichos de experimentação em campos diversos. Ocupações, experimentos coletivos, redes transversais, novas solidariedades: tudo isso, por diminuto que seja, pode reverberar num momento de crise e apontar para novas direções.”
APOCALIPSE GLOBAL
No início deste conturbado 2020, o escritor Joca Reiners Terron lançou o livro A Morte e o Meteoro (ed. Todavia). Na trama, a floresta amazônica é destruída e um povo indígena ameaçado de desaparecer busca refúgio político. O entrecho veio a partir de uma demanda da revista Granta, que queria uma visão de futuro a partir da conjuntura atual do Brasil: “Eu andava preocupado com as repercussões da chegada ao poder do atual presidente, sua carta branca para a exploração da Amazônia que poderiam resultar em retirada dos direitos indígenas e massacre. O resto foi trabalho de escrita”. Para Terron, a aproximação entre realidade e distopia é desenvolvida no século 21 pela perspectiva do apocalipse, assunto sempre presente no imaginário coletivo. “O mundo sempre esteve acabando, ao menos desde as seitas milenaristas que assombraram a Europa entre os séculos 11 e 15, na esteira do livro bíblico do Apocalipse de São João. Entretanto, com todo o conhecimento científico disponível hoje, nunca o fim do mundo foi tão palpável, nem tão democrático”, diz. “Graças à internet é um tema que preocupa hoje muito mais gente do que no século 11, por exemplo.” O roteirista Pedro Aguilera, que escreveu 3% (2016) e Onisciente (2020), ambas séries distópicas da Netflix, conta que a elaboração de sua primeira série de sucesso, 3%, partiu de um edital para pilotos de TV quando estava imerso na leitura dos clássicos Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell. Anos depois, para a idealização de Onisciente foi o noticiário que teve papel protagonista. “Vi uma matéria que falava sobre minidrones que poderiam ser letais, conter veneno, achei aquilo uma loucura.” Sobre um suposto papel de alerta que obras distópicas poderiam conter (ao menos na visão de alguns espectadores), ele acredita que a história não é bem essa. “Elas podem funcionar de alerta, mas prefiro pensar sempre na extrapolação de algum elemento tecnológico, social ou mesmo de uma ideia, o que me parece muito mais complexo. Não diria que essas narrativas trazem um potencial de alerta maior do que há em outras. O principal para mim não é tanto a ideia do ‘ficar esperto’, mas a resposta humana que vai ser dada a isso.” Tanto na ficção como na não ficção, as possibilidades de um novo futuro são inúmeras. Como diz o ditado, passada a tempestade vem a calmaria. Ou não. Quem sabe são a memória curta e a paz momentânea que gerem um efeito tranquilizador e efëmero; certos vícios, afinal, têm o costume de se reestabelecer e jogar a sociedade nos mesmos círculos distópicos de antes. Fato é que crises como as que vivemos são sempre terrenos férteis para a criação, e a exposição de entranhas apodrecidas ou próximas disso podem revelar novos horizontes.
ARTE DISTÓPICA QUE A REALIDADE PODE IMITAR
Fahrenheit 451, Ray Bradbury (1953) Retrata a sociedade americana sob um governo totalitário, em que livros são proibidos por supostamente impulsionar a tristeza humana. Bombeiros queimam as obras à temperatura de 451 graus Fahrenheit.
Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, Philip K. Dick (1968) Inspiração para Blade Runner (1982), retrata um caçador de recompensas no encalço de um grupo de androides em uma São Francisco coberta por pó radioativo letal para diversas espécies animais.
A Mão Esquerda da Escuridão, Ursula K. Le Guin (1969) Pioneiro no debate sobre a diversidade sexual, conta uma história interplanetária em que um humano encontra uma sociedade na qual o gênero não é binário e os habitantes são “ambissexuais”.
A Parábola do Semeador, Octavia Butler (1993) Uma sociedade destruída e armada, onde quem não paga polícia tem que resolver os conflitos por conta própria e incêndios criminosos se espalham pelo prazer causado aos usuários do “piro”, a droga da época.