Não faz muito tempo, a agência americana Food and Drug Administration (FDA) aprovou a semaglutida, o ingrediente ativo das famosas canetas emagrecedoras como Ozempic e Wegovy, para o tratamento da obesidade e também para redução do risco de ataque cardíaco e acidente vascular cerebral em pacientes com obesidade e doenças cardíacas. Muitos relatos nas redes sociais mostrando uma melhor qualidade de vida somaram-se a alguns estudos que começaram a surgir trazendo benefícios, para muitos, “inesperados” do tratamento antiobesidade; mas a verdade é que os médicos que trabalham com obesidade já sabiam há muito de algumas relações. “A ciência está mostrando, por meio dos estudos que acompanham pacientes que emagrecem com os medicamentos análogos ao GLP-1, que o acúmulo excessivo de gordura corporal está ligado a uma série de doenças, dentre elas o diabetes mellitus, dislipidemias, hipertensão arterial, problemas respiratórios, cardiovasculares, osteoarticulares, doenças inflamatórias, digestivas, degenerativas e neoplásicas. Estar excessivamente acima do peso também pode sobrecarregar os rins, o que, somado ao aumento da pressão arterial, faz com que o órgão perca progressivamente suas funções, deixando de filtrar o sangue e produzir hormônios, o que causa, consequentemente, a doença renal crônica”, explica a médica nutróloga Dra. Marcella Garcez, diretora e professora da Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN). “Além disso, a obesidade se relaciona com as doenças psiquiátricas como depressão e baixa autoestima; estudos têm considerado a inflamação causada pela obesidade como um fator de risco para doenças neurológicas, como a doença de Alzheimer e outras comorbidades neurais. O excesso de peso corporal também pode causar desregulações hormonais, que causam infertilidade, pioram o sono e destroem a qualidade de vida. A chave para entender essas ligações é saber que a obesidade aumenta o estado inflamatório do corpo. Com mais inflamação, há maiores riscos de inúmeras doenças e condições”, acrescenta a endocrinologista Dra. Deborah Beranger, médica com pós-graduação em Endocrinologia e Metabologia pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (SCMRJ) e cursos de extensão em Obesidade e Transtornos Alimentares pela Harvard Medical School.
GLP-1 é a abreviação de peptídeo 1 semelhante ao glucagon, um hormônio natural que estimula a produção e liberação de insulina, retarda a digestão, reduz o apetite e diminui o foco do cérebro na comida. “As canetas emagrecedoras são medicamentos com esse composto e que são aplicadas através de injeção. Elas atuam no cérebro aumentando a saciedade e retardam o esvaziamento gástrico, dando uma sensação de que comemos mais”, diz a Dra. Deborah Beranger. “Esses medicamentos foram originalmente desenvolvidos como tratamentos para diabetes, mas à medida que mais pessoas começaram a tomá-los, os pesquisadores observaram que esses medicamentos são eficazes para muito mais condições do que apenas diabetes e perda de peso”, diz a Dra. Marcella Garcez. “No entanto, todos os benefícios adicionais são relacionados ao emagrecimento. Não é indicado o uso desse medicamento para pacientes que não são portadores de obesidade ou outras doenças metabólicas como diabetes tipo 2, assim como não deveria ser utilizado sem prescrição médica, porque não é livre de contraindicações e efeitos colaterais”, ressalta a médica nutróloga.
Nem todas as boas notícias dos medicamentos emagrecedores relatadas pelos usuários são confirmadas por estudos científicos. Algumas sensações podem ser comuns à perda de peso e outras podem ser mais complexas, mas incluem libertação de vícios (bebida alcoólica e cigarro), diminuição da ansiedade e da raiva e melhora da fertilidade.
Menor risco de insuficiência cardíaca
Na insuficiência cardíaca, o coração perde progressivamente a capacidade de bombear sangue suficiente para o resto do corpo. “Desses pacientes, aproximadamente metade tem um tipo conhecido como insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada, em que o coração consegue bombear normalmente, mas está rígido demais para se encher de sangue. Em estudo publicado no ano passado, pesquisadores testaram a semaglutida como tratamento para insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada em pacientes não diabéticos. O resultado: os pacientes que receberam o medicamento apresentaram menos sintomas e relataram melhor qualidade de vida em comparação com aqueles que receberam o placebo. Os pacientes que receberam o medicamento apresentaram níveis mais baixos de proteína C reativa, que é um marcador de inflamação”, diz a Dra. Deborah. “Esta é uma grande descoberta, mas o estudo foi demasiado pequeno para determinar se a semaglutida pode reduzir o risco de hospitalização ou morte, mas dada a melhora acentuada na qualidade de vida dos pacientes, é promissor. Alguns desses benefícios são provavelmente relacionados à perda de peso”, diz a endocrinologista. “Mas os cientistas também lançam outras teorias, já que esses medicamentos também são cardioprotetores e reduzem a inflamação, que é conhecida por causar insuficiência cardíaca”, diz a Dra. Deborah.
Proteção contra doença renal
Os rins são muito sensíveis ao excesso de gordura corporal. É por isso que há no mundo uma epidemia de doença renal crônica – relacionada com o aumento da prevalência da obesidade. Mas existem poucos tratamentos eficazes. “Como demonstraram alguns estudos recentes, o agonista do GLP-1, dulaglutida, ajuda pacientes que sofrem de doença renal crônica e diabetes. Num ensaio recente que analisou o efeito da semaglutida em doentes com doença renal crônica e diabetes tipo 2, outra doença que se relaciona com a piora do funcionamento dos rins, o tratamento foi tão eficaz no atraso da progressão da doença renal crônica que o ensaio clínico foi interrompido precocemente para que todos os doentes do ensaio pudessem se beneficiar do tratamento medicamentoso”, diz a médica nutróloga. “Foi o único ensaio com semaglutida que foi interrompido precocemente devido à eficácia. Para interromper precocemente um ensaio de eficácia, isso mostra que existem provas tão suficientemente fortes da sua eficácia que já não seria considerado ético continuar a administrar o placebo a outro grupo de pacientes”, destaca a Dra. Marcella. “Os efeitos sobre os rins são apenas parcialmente devidos à redução de fatores de risco, como pressão arterial, açúcar no sangue e peso. Outros benefícios provavelmente resultaram da redução da inflamação”, acrescenta a médica nutróloga.
Maiores chances de gravidez?
Um número crescente de pacientes que tomam agonistas do GLP-1, como Ozempic ou Mounjaro, relatou nas redes sociais um efeito colateral surpreendente: a gravidez inesperada, que para alguns pacientes ocorreu após anos de luta contra a infertilidade. Os relatos foram apelidados pela imprensa norte-americana de “Baby Boom Ozempic”, em analogia aos crescentes relatos que fazem a relação entre os medicamentos e a melhora da fertilidade. “Pouco se sabe sobre os efeitos do Ozempic e de medicamentos semelhantes em mulheres que desejam engravidar ou que engravidam enquanto tomam os medicamentos, porque foram especificamente excluídas dos primeiros ensaios clínicos do medicamento. No entanto, já é bem estabelecido pela ciência que há melhora da ovulação com a redução da resistência à insulina e do peso, dois benefícios promovidos por esse tipo de medicamento”, pontua o Dr. Fernando Prado, especialista em Reprodução Humana, Membro da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva (ASRM) e diretor clínico da Neo Vita. “A perda de peso pode afetar a ovulação e a fertilidade. Da mesma maneira, com o equilíbrio dos hormônios e a melhora da resistência à insulina, o acesso hormonal volta a funcionar e isso pode ajudar com que as mulheres comecem a ovular novamente – e dependendo do grau de resistência à insulina e obesidade, elas podem não estar ovulando há anos. Há uma suspeita, também, de que os medicamentos interfiram nos contraceptivos orais em alguns pacientes”, diz o médico. “No entanto, existem diversos marcadores relacionados à fertilidade de um casal, que quando quer engravidar precisa ser acompanhado por uma equipe especializada e multidisciplinar. Não faz sentido usar um medicamento para emagrecer, sem orientação médica, com o objetivo de engravidar”, diz o Dr. Fernando.
Segundo a Dra. Deborah, pacientes obesos com fator de risco para hipertensão arterial, dislipidimias, infarto e AVC também podem se beneficiar do emagrecimento promovido por esse tipo de medicamento. Em breve, o Brasil também receberá outros compostos, mais potentes, o que poderá trazer ainda mais benefícios. “A tirzepatida (análogo do GLP-1 e de outro hormônio, GIP) promete um efeito adicional ao melhorar a secreção de insulina pelas células beta do pâncreas. Em estudos, existe a droga experimental retatrutida (além dos dois hormônios, GLP-1 e GIP, mimetiza mais um, o glucagon). O medicamento ajudou as pessoas a perder, em média, cerca de 24% de seu peso corporal. Enquanto a GIP melhora a forma como o corpo decompõe o açúcar, o glucagon pode reduzir o apetite e ajudar o metabolismo a funcionar com mais eficiência. A ciência está ‘pegando’ essas moléculas normais de sinalização presentes no corpo e as transformando em medicamentos”, destaca a Dra. Marcella. Mas todos eles precisam ser administrados com prescrição e acompanhamento médico. “O tratamento de obesidade é individualizado, há pacientes com padrão compulsivo, outros com depressão associada, insônia, saciedade reduzida, ansiedade, metabolismo lento. Todos esses fatores devem ser analisados para avaliar as melhores medicações e, também, reduzir os efeitos colaterais”, finaliza a endocrinologista.
FONTES:
- DRA. MARCELLA GARCEZ: Médica Nutróloga, Mestre em Ciências da Saúde pela Escola de Medicina da PUCPR, Diretora da Associação Brasileira de Nutrologia e Docente do Curso Nacional de Nutrologia da ABRAN. A médica é Membro da Câmara Técnica de Nutrologia do CRMPR, Coordenadora da Liga Acadêmica de Nutrologia do Paraná e Pesquisadora em Suplementos Alimentares no Serviço de Nutrologia do Hospital do Servidor Público de São Paulo. Além disso, é membro da Sociedade Brasileira de Medicina Estética e da Sociedade Brasileira para o Estudo do Envelhecimento. Instagram: @dra.marcellagarcez
- DRA. DEBORAH BERANGER: Endocrinologista, com pós-graduação em Endocrinologia e Metabologia pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (SCMRJ) e pós-graduação em Terapia Intensiva na Faculdade Redentor/AMIB. Com cursos de extensão em Obesidade, Transtornos Alimentares e Transgêneros pela Harvard Medical School, a médica tem MBAs de Saúde e Qualidade de Vida, de Marketing e Branding Médico e de Mindset, todos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), e curso de Obesidade e de imersão em Medicina Culinária pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Fez Fellowship pela European Association for the Study of Obesity, em Portugal; é speaker dos laboratórios Servier, Novo Nordisk, Novartis, Merck, AstraZeneca, Lilly e Boehringer. Instagram: @deborahberanger
- DR. FERNANDO PRADO: Médico ginecologista, obstetra e especialista em Reprodução Humana. É diretor clínico da Neo Vita e coordenador médico da Embriológica. Doutor pela Universidade Federal de São Paulo e pelo Imperial College London, de Londres – Reino Unido. Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo, Membro da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva (ASRM) e da Sociedade Europeia de Reprodução Humana (ESHRE). Instagram: @neovita.br